domingo, 21 de fevereiro de 2010

AGRONOMIA E HISTÓRIA IV

O livro de Bittencourt Calasans se inicia com o que o autor denominou de “Parte Histórica”. Ali aparecem as origens das práticas agrícolas, numa discussão que remete aos egípicios, aos gregos, aos romanos, aos chineses e aos persas, antes de chegar ao Brasil. Também faz uma exposição sobre a cana de açúcar, suas origens e suas espécies, revelando que a primeira espécie de cana aqui introduzida foi a Caiana, no Rio de Janeiro, em 1570, por Mem de Sá. Posteriormente, o marquês de Barbacena mandou buscar na Jamaica as espécies Malabar e Batávia. Diz que desde o século XIII a planta é conhecida na Arábia, tendo daí se expandido para a Síria, Chipre, Turquia e Sicília. Depois, foi levada pelos portugueses desde a Sicília até as ilhas da Madeira, de Porto Santo e São Tomé. Os espanhóis a trouxeram para a América, plantando-a em São Domingos, a partir de 1506.
O autor produz um diagnóstico do plantio da cana e do fabrico do açúcar no país, identificando um completo atraso nas suas técnicas, defendendo a necessidade da difusão dos saberes da ciência agronômica no Brasil. Para ele, uma das primeiras necessidades era a da substituição da cana Caiana pelas espécies Salangor e Transparente. A espécie Salangor, entendia Calasans, produzia um caldo abundante, doce e fácil de clarificar, resultando num açúcar alvo e de boa granulação. Do mesmo modo, a cana Transparente que, ademais, tinha a facilidade de crescer também em terrenos arenosos e fracos. Sugere também o plantio da cana China, por ser dura, por ser resistente à seca, induzindo que ela deveria ser plantada ao redor dos canaviais e à margem das estradas, onde é maior o estrago sofrido pela planta. Aponta o texto os três grandes inimigos da cultura da cana de açúcar no Brasil do século XIX: a formiga, a raposa e o guaxinim, acrescendo porém um quarto e inusitado adversário desse tipo de lavoura: os “incisivos dentes da raça humana, outro inimigo não menos terrível das canas alheias” (CALASANS, João José de Bittencourt. O agricultor sergipano da canna de assucar. Salvador, Typ. De Camillo de Lellis Masson & C.,1869. p. 13).
No caso específico das variedades de cana de açúcar plantadas em Sergipe, algumas delas, como a Rajada ou Pitu e a Flor de Cuba, somente seriam aqui introduzidas no final do século XIX (FRANCO, Emmanuel. Viagens. Uma semente plantada. Aracaju, Gráfica Editora J. Andrade, 2005. p. 11).
Após a parte que considera histórica, já no primeiro capítulo do seu estudo, Bittencourt Calasans discute os problemas referentes ao modo de lavrar ou revolver a terra; a gradagem; os sulcos para o plantio da cana; e, os instrumentos aratórios e suas partes componentes. O segundo capítulo se debruça sobre a mecanização agrícola, tratando dos motores animados e inanimados aplicados ao fabrico do açúcar e à plantação da cana. Já os capítulos terceiro, quarto e quinto, com os quais o livro se encerra, são dedicados exclusivamente ao processo industrial de fabricação do açúcar.
Os estudos de Bittencourt Calasans se debruçam sobre os solos de Sergipe e sua adequação ao plantio da cana, chegando a conclusão que são boas para este cultivo tanto as terras de massapê quanto as chamadas areias gordas. Em outras palavras, a formação do canavial para aquele estudioso independia de ser a terra calcária, ferruginosa, arenosa ou de outra composição. A restrição feita por ele era a de que os terrenos nos quais se plantava cana não podiam ser pantanosos, mas sim deveriam ser de fácil esgotamento. A preferência recaía sobre os terrenos ditos abaulados. Os pântanos poderiam ser utilizados, desde que os agricultores se dispusessem a utilizar uma técnica que dizia Bittencourt Calasans ser desconhecida da agricultura sergipana: a drenagem, já amplamente utilizada na Inglaterra, Bélgica, França e Estados Unidos da América, segundo as suas anotações.
As pesquisas do autor aqui apresentado apontavam os meses de julho, agosto, setembro, outubro e novembro como os mais adequados ao plantio da cana em Sergipe. Considerava ser aquele período o de maior facilidade para lavrar o terreno, como também para manter o ciclo da cultura, de modo que as plantas amadurecessem e permitissem que os engenhos moessem ininterruptamente entre os meses de agosto a fevereiro, posto que o açúcar deveria ser colocado no mercado durante o nosso verão, quando se obtinha melhor preço. No período entre uma moagem e outra, os produtores de açúcar deveriam cuidar de culturas leguminosas, feijão, milho, arroz e mandioca.
Bittencourt Calasans discutia exaustivamente as técnicas de lavrar a terra. Para ele, as lavras profundas eram mais adequadas por protegerem o terreno do excesso de umidade e criarem elementos para que as plantas pudessem resistir aos ataques de agentes externos. Via ainda como técnica indispensável ao êxito do plantio a gradagem, através do emprego da grade de Geddes, para aplainar, ciscar e afofar a terra cortada e revirada pelo arado misturando a terra com a matéria orgânica nela existente e tornando-a porosa. Após a gradagem, os sulco para o plantio da cana deveriam ser feitos imediatamente por arados puxados a cavalos, por serem estes mais ágeis e de melhor acabamento que os arados puxados por bois, os regos paralelos destinados ao plantio.
Dois meses após o plantio deveria ser feita a primeira limpa do canavial por um pequeno arado puxado por um cavalo. Essa técnica, chamada de abaclamento, Calasans afirma haver aprendido nos Estados Unidos da América, servindo para o expurgo de ervas daninhas. Do mesmo modo, a operação deveria ser repetida aos seis, aos oito e aos nove meses após o plantio, de modo a colaborar ainda com a remoção das folhas secas, acelerando a maturação. Após o corte, a palha deveria ser colocada entre as valas e coberta de terra, para enriquecer a matéria orgânica existente no terreno. Além disto deveria ser adicionado também o bagaço verde resultante da moagem da cana, porém fazia a ressalva de que, prioritariamente, este bagaço deveria ser queimado nas caldeiras das usinas como combustível. O autor condenava a prática de fazer queimadas nos terrenos após a colheita da cana, afirmando que este método empobrecia a terra, deixando apenas cinzas e tocos secos. Admitia, porém, essa queima, quando o canavial fosse muito antigo ou estivesse sendo vítimas de ataques de pragas como besouros e lagartas.
O debate sobre mecanização agrícola costumava entusiasmar Bittencourt Calasans. Ele afirmava ser obrigatório aos plantadores de cana o uso do arado grande de lavrar ou de revolver no plano, denominados sub-solo número um e sub-solo número dois. Além deste, também o arado de ladeira, o arado médio, o arado de duas orelhas, o cultivador, a grade de Geddes e o rolo eram tidos como indispensáveis. O entusiasmo do autor para com a mecanização se justificava em nome do combate que este fazia ao trabalho escravo, em relação ao qual se declarava contrário. Entendia que o homem fora dotado de razão para conhecer o que mais lhe convinha. E de vontade livre para por em prática os ditames da sua razão. Privá-lo da escolha e do livre exercício do trabalho seria assim atentar ao mesmo tempo contra os direitos da sua inteligência e da sua liberdade.


Quero dizer, que o trabalho do homem deve ser livre. Sendo livre o trabalho, o obreiro pode convencionar com o empresário a paga do serviço que há de prestar; tem o dever de presta-lo, porque a isso se obrigou, e é de seu interesse. Mas para o escravo a remuneração do serviço está a arbítrio do senhor, que a pode reduzir, como de feito a reduz ao mínimo; e essa injustiça é bastante para tirar ao escravo a boa vontade de trabalhar (CALASANS, João José de Bittencourt. O agricultor sergipano da canna de assucar. Salvador, Typ. De Camillo de Lellis Masson & C.,1869. p. 39).


Bittencourt via, portanto, a escravidão como uma enfermidade prejudicial aos interesses da sociedade brasileira, uma contradição num Estado que se propunha civilizado, uma vez que violava os


princípios mais sagrados da religião, da moral, e do direito natural, constituindo sociedades cheias de perigos, para os senhores, de sofrimentos para os escravos, e dando em resultado um trabalho o mais caro de todos! (...) essa escravidão dizemos deve ser banida, com a devida circunspecção dentre nós (CALASANS, João José de Bittencourt. O agricultor sergipano da canna de assucar. Salvador, Typ. De Camillo de Lellis Masson & C.,1869. p. 39).


Não apenas Bittencourt Calasans, mas também alguns outros proprietários de engenho mantinham esse tipo de posição em face do escravismo. Um deles, Vicente Luiz de Freitas Barreto, proprietário dos engenhos Varzinha, São Luiz e São Vicente, em Laranjeiras, Massacará, em Maruim, e Limoeiro, em Santo Amaro, ao morrer, em junho de 1856, deixou em seu testamento a determinação de que os seus 150 escravos deveriam ser libertados, decisão que foi cumprida pela viúva (FRANCO, Emmanuel. Viagens. Uma semente plantada. Aracaju, Gráfica Editora J. Andrade, 2005. p. 222).
Além de produzir açúcar, a Província de Sergipe sempre foi também uma importante produtora de cereais. Nos próprios engenhos havia a necessidade de alimentar os escravos e as demais pessoas que ali viviam, o que fazia com que se reservasse uma determinada área de terra para o plantio de cereais e de mandioca. Fora dos engenhos e nas regiões da Província que não se dedicavam a produção açucareira era importante cultivar mandioca, feijão, milho e arroz. A principal região produtora de arroz em Sergipe era a do Baixo São Francisco. Nas lagoas inundadas anualmente pelas cheias do rio, os agricultores haviam aprendido a cultivar arroz. Era também importante para a vida econômica da Província a produção de fumo, ticum, mamona, coco, café, amendoim, algodão e uva (ALMEIDA, Maria da Glória Santana de. “Estrutura de produção: a crise de alimentos na província de Sergipe (1855-1860)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 27, 1965-1978. p. 21). Outra importante atividade rural em Sergipe era a pecuária de bovinos, ovinos, suínos, eqüinos e caprinos.
Não obstante o entusiasmo econômico existente na Província entre 1850 e 1855 com o bom andamento dos negócios, pesquisadores como a professora Maria da Glória Santana de Almeida indicam que do ponto de vista da tecnologia agrícola, Sergipe se ressentia da “falta de técnicas no tratamento do terreno e na semeadura e o esperdício espacial da propriedade”, reduzindo sensivelmente os terrenos dedicados propriamente ao plantio da cana (ALMEIDA, Maria da Glória Santana de. “Estrutura de produção: a crise de alimentos na província de Sergipe (1855-1860)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 27, 1965-1978. p. 19).
Toda essa atividade, entretanto, não era suficiente para impedir a existência de problemas quanto a produção e distribuição de alimentos em Sergipe, já que a cultura da cana era predominante nas áreas mais férteis. A população de Sergipe se alimentava fundamentalmente de farinha de mandioca, milho, arroz, feijão, carne fresca e carne salgada. Ao descrever os hábitos alimentares em Maroim, na metade do século XIX, a alemã Adolphine Schramm elogiou o consumo de frutas e várias outras práticas de alimentação, vendo como ponto alto a ótima sopa de carne que consumia diariamente, além da carne cozida com molho picante, as verduras, o maxixe, o chuchu, a abóbora, a farinha de mandioca, a galinha ao molho pardo, o enrolado de carne, os bolinhos de carne, a salada de arenque, os bolinhos de peixe, a carne assada com feijão preto, o inhame, a salada de batata, a carne de carneiro e a carne de porco (FREITAS, 1991). Da mesma maneira, criticou a mania de comer feijoada, a dificuldade para encontrar leite, a escassez de ovos de galinha e os preços dos gêneros alimentícios, que considerava muito caros. Alguns desses alimentos eram importados. A charque vinha do Rio Grande do Sul e do Ceará. O bacalhau vinha da Europa. Maria da Glória Santana de Almeida entende que


havia uma debilidade alimentar crônica da população sergipana que, facilmente, se transformava em catástrofe, quando se alterava a quantidade normal de alimentos levada aos mercados. A comprovação disso pode-se conseguir pelos sucessivos registros de epidemias que ceifaram muitas vidas. O estado de subnutrição facilitava a constante proliferação de doenças infecto-contagiosas como a varíola, a febre amarela, o tifo, corriqueiramente registradas nos relatórios da Saúde Pública (ALMEIDA, Maria da Glória Santana de. “Estrutura de produção: a crise de alimentos na província de Sergipe (1855-1860)”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 27, 1965-1978. p. 24).

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

AGRONOMIA E HISTÓRIA III

Bittencourt Calasans doutorou-se em Direito pela Universidade de Bruxelas, na Bélgica, em 1835. Após retornar a Sergipe, assumiu o comando do engenho da sua família e começou a estudar agronomia por conta própria, lendo os principais autores então existentes, com o objetivo de introduzir na sua propriedade arados, implementos agrícolas e algumas máquinas movidas a vapor. O seu interesse o levou a uma viagem de estudos a Cuba e aos Estados Unidos da América em 1857, durante a qual buscou aperfeiçoamento em estudos a respeito dos melhores sistemas de cultura da cana e do fabrico do açúcar. Nesta viagem, demorou-se por mais tempo na Louisiania, no sul dos Estados Unidos, onde se considerava que a agricultura era mais avançada, com um maior grau de incorporação de tecnologia, tanto no plantio da cana quanto na produção de açúcar. Talvez por esta razão e pelo trabalho que publicou apareça como engenheiro agrônomo na “Relação dos cidadãos que têm governado a Província de Sergipe, desmembrada da Baía por Decreto de 8 de Julho de 1820, desde a instalação até 1889”. Bittencourt governou a Província de Sergipe durante dois dias, em 1845. Além disso, recebeu o título de Comendador da Ordem de Cristo, por haver hospedado o Imperador Pedro II em sua residência, na cidade de Estância, no ano de 1860. Membro de algumas sociedades científicas do século XIX, ele também foi dirigente do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura.
O livro está organizado em quatro capítulos, uma introdução e um resumo final à guisa de conclusão. Impresso na Bahia pela tipografia de Camillo de Lellis Masson & Companhia, o livro continha 98 páginas no formato 11 X 21,5 cm. Ainda no prólogo, o autor esclarece que ao assumir a direção do engenho Castelo estava despreparado para a missão e corria o risco de levar o empreendimento à bancarrota. Esta teria sido a razão determinante para que houvesse se lançado ao estudo dos clássicos da Agronomia e buscasse viajar ao exterior, a fim de estudar e conhecer as técnicas de plantio da cana e de fabricação do açúcar, além de adquirir a bibliografia mais atualizada. Revela também que a partir dos estudos realizados estabeleceu um método que consistia em testar as informações que as suas fontes lhe apresentavam. O passo seguinte foi o de organizar a exposição presente no texto.


Procurei ajustar as frases e as palavras do Agricultor Sergipano às inteligências de grande parte dos plantadores da cana de açúcar, e julgo ter feito alguma coisa no estado em que nos achamos, baldos até hoje de um livro prático, neste gênero, que seja mais aplicado aos nossos usos e costumes, e ao nosso clima, como este, escrito em linguagem corrente, abrangendo todas as operações e trabalhos do plantio da cana e do fabrico do seu açúcar, aí descritos minuciosamente (CALASANS, 1869: VI).

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

AGRONOMIA E HISTÓRIA II

O primeiro livro sobre agronomia produzido em Sergipe foi escrito por um bacharel em Direito e proprietário do engenho Castelo dedicado ao estudo dos problemas agronômicos, principalmente o plantio da cana e a produção do açúcar. O seu autor, João José de Bittencourt Calasans nasceu em junho de 1811, no engenho Castelo, à época município de Santa Luzia, região que atualmente corresponde ao território do município de Indiaroba. Calasans morreu em agosto de 1870, um ano após haver publicado O agricultor sergipano da cana de açúcar. Em fevereiro de 1975, quando das celebrações do IV centenário do início da colonização em Sergipe, a comissão encarregada dos festejos tentou reedita-lo sob os auspícios da então Superintendência da Agricultura e Produção – Sudap, sem que, no entanto, obtivesse êxito.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

AGRONOMIA E HISTÓRIA

As possibilidades da pesquisa agronômica no Brasil estão postas desde 1808, quando D. João VI criou o Instituto Botânico, no Rio de Janeiro. A Agronomia conheceu os melhores estímulos ao seu desenvolvimento em Sergipe em face dos negócios da produção açucareira. O estudo da história desse campo do conhecimento permite, dentre outras coisas, perceber alguns dos modos usados pelos engenheiros agrônomos para a gestão científica do seu campo.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

HISTÓRIA DA CIÊNCIA, FILOSOFIA E HITORIOGRAFIA VIII

Um dos problemas que requer muita atenção diz respeito ao conjunto de representações sobre a História do Brasil, disseminado a partir do movimento republicano. Dentre as idéias difundidas está presente uma quase consensual certeza de que a política cultural e científica brasileira é obra exclusiva do republicanismo, desfocando assim as discussões a respeito do problema. É evidente que o Estado republicano efetuou transformações no discurso a respeito do ensino e da pesquisa científica, porém não se pode afirmar que tais preocupações e concepções eram novas na sociedade brasileira.
A opção que se fez neste trabalho foi a de estudar a constituição do campo da ciência e da tecnologia em Sergipe a partir do século XIX, considerando-se que o território sergipano foi desmembrado da Capitania da Bahia, em 1820, quando então foi criada a Capitania de Sergipe D’El Rey.
Conhecer os problemas referentes à história da pesquisa e do ensino da ciência e da tecnologia em Sergipe requer o reconhecimento de um universo ainda fechado, escondido. Porém, são abundantes as fontes para o estudo a respeito do assunto. Os indícios constituem um conjunto informativo seguro o suficiente para a produção de análises historiográficas.
Não obstante os esforços que têm sido feitos para desenvolver os campos de estudo acerca da história da ciência e da tecnologia em Sergipe, ainda é necessário reunir e organizar muitas fontes necessárias ao desenvolvimento da pesquisa histórica e o estabelecimento de linhas de pesquisa, principalmente no Departamento de História e no curso de Mestrado em Educação da UFS que se debrucem sobre as temáticas próprias a este campo.
A tendência modernizadora no trato com a informação, apesar de permitir a dinamização do acesso aos dados, tem imposto uma rotina de descarte documental descontrolado que leva, na maioria dos casos, ao apagamento irreversível da memória de grupos e instituições.
É necessário cobrar procedimentos metodológicos adequados. A pesquisa deve fugir da visão salvífica presente no discurso dos memorialistas. O material existente nos arquivos das instituições dedicadas à pesquisa científica e nos acervos dos arquivos históricos é múltiplo, originado de distintas fontes e inclui utensílios e equipamentos utilizados nos laboratórios científicos e tecnológicos de Sergipe e também documentação impressa, áudio-visual e imagética com significativo valor para a memória e a história da ciência e da tecnologia no Estado. É necessário explorar essa massa documental com pesquisas que tenham como fulcro de análise os processos de produção e transmissão do conhecimento científico e tecnológico.
Este trabalho opera com a hipótese segundo a qual durante o século XIX foi constituído um campo intelectual em Sergipe, do qual participou um número significativo de cientistas, não obstante boa parte dos estudos sobre esse tema atribuir a formação de tal campo ao período republicano. Estudar a intelectualidade dos anos oitocentos permite entender a falácia de alguns estudos para os quais a elite daquele período seria iletrada e detentora apenas do “poder econômico e político, sem nenhuma vinculação com o campo intelectual, o que de imediato parece algo paradoxal, pois, a suposição é a de que ninguém chega a ocupar posição de mando na sociedade sem que se utilize da capacidade mental” (SILVA, 2004: 5).
O pressuposto é o de que esta elite intelectual do século XIX, pelas suas características se sobrepunha a outros grupos, uma vez que o conceito de elite “designa um pequeno grupo que, num conjunto mais vasto – religioso, cultural, político, militar, econômico, social ou outro – é tido como superior pelas suas funções de mando, de direção, de orientação ou de simples representação” (BARATA e BUENO, 1999). A elite intelectual sergipana é, assim, concebida “como sendo composta por vários grupos constituidores, oriunds de diferentes elites profissionais, que contribuíram para a formação de uma totalidade” (SILVA, 2004: 6).

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

HISTÓRIA DA CIÊNCIA, FILOSOFIA E HITORIOGRAFIA VII

No primeiro século da colonização, em 1555, quando Nicolas Villegagnon fundou a França Antártica na Baía de Guanabara, o almirante Coligny montou a estratégia de estabelecer colônias protestantes no Brasil. Em 1557 chegou o primeiro contingente de refugiados huguenotes que o almirante havia solicitado a Jean Calvin. O Visitador-Geral Heitor Furtado de Mendonça, quando da primeira visitação do Santo Ofício a Pernambuco já denuncia em seu relato uma forte presença de comerciantes protestantes alemães. Gilberto Freyre relata problemas vividos pela Província de Pernambuco, em 1858, a fim de sepultar alemães protestantes, quando estes faleciam em Recife. Problema que era resolvido sempre pelo Cônsul de Sua Majestade Britânica, que autorizava o sepultamento no Cemitério dos Ingleses.
De um modo geral, o mercado editorial brasileiro do século XIX dá bem a medida dessa influência. A primeira editora brasileira, a Livraria Universal, fundada em 1833 (PAIXÃO, 1996: 14), tinha como sua principal atividade a tradução de originais alemães. Outro bom indicador é o processo de estabelecimento das colônias de alemães que se expandiu desde as primeiras décadas do século XIX, a partir da Bahia. A primeira dessas colônias a funcionar no país foi a Leopoldina, instalada em 1823, na vila Viçosa, região de Porto Seguro. Segundo Antônio Moniz de Souza seus fundadores eram naturalistas.


O estado prodigioso desta colônia está acima de tudo que dizer-se possa. O arranjo, a limpeza, a economia, o verdadeiro método de agricultores civilizados, a boa ordem é por esta gente posta em prática. Suas casas bem repartidas e mobiliadas, as mobílias são por eles mesmos feitas, suas hortas são abundantes de toda hortaliça; grandes pomares; eles usam de máquinas que suavizam o trabalho, cultivam os frutos do Brasil; porém o café é o seu forte ; seus escravos são mais felizes que a maior parte de seus vizinhos livres, que sem hábito do trabalho jazem na miséria. (...) os colonos na abundância, possuindo já embarcações em que fazem as exportações dos seus gêneros para a Bahia e Rio de Janeiro (SOUZA, 2000: 189-190).


Em 1916 foi criada no Brasil a instituição que receberia, em 1922, a denominação de Academia Brasileira de Ciências – ABC. A criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, em 1948, representou um passo importante na luta pela afirmação e pela participação política dos cientistas no Brasil. Segundo Ana Maria Fernandes, “no Brasil, a educação e a ciência são, em termos financeiros, largamente patrocinadas e sustentadas pelo Estado” (FERNANDES, 1990: 20). Portanto, na prática, o reconhecimento significa ser aceito pelo Estado, pelos governos como interlocutor que porta algum grau de legitimidade. Para compreender a atuação política da ABC e da SBPC é importante atentar os significados que teve para a ciência brasileira o golpe militar de 1964. Em relação ao período da ditadura militar iniciada em 1964, certamente ainda não vivemos o suficiente e, por enquanto, temos sido capazes, apenas, de apontar as suas mazelas sem termos conseguido produzir análises consistentes e equilibradas a respeito da sua política científica e dos modos como buscou se legitimar junto à população brasileira.
Todavia, há indícios reveladores de que, cada vez mais os brasileiros sentem haver chegado a hora de ajustar o descompasso entre memória e história no que concerne ao período de 1964 a 1984. Em algumas situações, dentre os que estão se debruçando sobre este passado, há partícipes ativos dele. Depoentes e produtores de uma dada memória que busca persuadir a todos quanto a justeza da sua versão e desqualificar a visão do oponente.
Este trabalho coloca em discussão o fato de que as análises da política educacional implementada no Brasil durante vinte anos, a partir de 1964, necessitam renunciar a um certo maniqueísmo que prioriza apenas as denúncias das mazelas e produz o esquecimento de alterações fundamentais no sentido do apoio financeiro a ciência e a tecnologia e a qualificação dos serviços oferecidos nesse campo, sob padrões que até então o país desconhecia, legitimando os governantes ditatoriais junto a amplos setores da população brasileira.
Reconhecer os eventuais avanços da política de desenvolvimento científico e tecnológico implementada naquele período, não implica negar o caráter ditatorial do governo que conduzia tal política. Na verdade, significa exercer com honestidade o ofício de historiador, extraindo dos documentos escritos e orais, bem como dos múltiplos indícios iconográficos, a necessária reflexão, colocando ao alcance dos mais jovens os escaninhos que a memória insiste em esquecer, muitas vezes fugindo de polêmicas presentes nas contraditórias versões.
Esta é uma necessidade que se impõe principalmente em relação aos trabalhos acadêmicos. Lucilia de Almeida Neves Delgado revela que mesmo a bibliografia decorrente da pesquisa acadêmica tem sido razoavelmente maniqueísta (DELGADO, 2004, 17).


O ano de 1964 é tomado como um ponto crucial na análise porque, se o regime militar, como conseqüência de sua própria natureza, coagiu a comunidade científica, também apoiou financeiramente a ciência e a tecnologia como nunca antes no Brasil. Esse apoio financeiro pode-se explicar pelas políticas do regime autoritário brasileiro que se baseavam no planejamento, nos tecnocratas e numa economia fortemente estatizada. Tal como foi usualmente caracterizado, o Estado militar brasileiro baseava-se numa aliança entre a burguesia nacional e internacional, os militares como grupo dirigente, e os tecnocratas (FERNANDES, 1990: 20).


É evidente que o caso da história da ciência e das suas práticas em Sergipe requer que se constitua e coloque em circulação uma memória, forma prática de oferecer as bases empíricas para a organização de um campo científico: o da História. A História é, por assim dizer, a forma científica de organização da memória. Esta, por ser fruto de uma escolha efetuada pela ação temporal das configurações humanas, se apresenta sob a condição de monumento. Ou, quando tomada pelos historiadores, submetida ao trabalho destes, caracterizada como documento. O historiador Jacques Le Goff lembra que a palavra latina


monumentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O monumentum é um sinal do passado... é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. O monumento tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos (LE GOFF, Jacques, 1984: 95-106).


As contribuições memorialísticas são sempre bem vindas. Principalmente, quando bem ordenadas e expostas de um modo que vai além dos limites da própria memória.
Estudar a história da formação do campo científico no Brasil, de modo a oferecer maior clareza à constituição do conhecimento histórico quanto a esta questão é, no dizer de Marta Maria Chagas de Carvalho, analisar as práticas adotadas para “civilizar bárbaros, desinfetar corpos, extirpar vícios, lapidar sentimentos, apurar sensibilidades, moldar gestos e implantar hábitos de civilidade” (CARVALHO, 2002: 5).

sábado, 6 de fevereiro de 2010

HISTÓRIA DA CIÊNCIA, FILOSOFIA E HITORIOGRAFIA VI

A difusão no Brasil de todo o debate sobre ciência e cultura que se irradiava por toda a Europa a partir, principalmente da Alemanha, recebeu forte estímulo de uma conjunção de fatores, dentre os quais é possível destacar o crescimento do protestantismo, não apenas tolerado, mas, também, intensivamente estimulado pelo Estado monárquico. Desde os primeiros anos após a independência é possível encontrar evidências indicadoras desse estímulo, no bojo da política de substituição da mão-de-obra escrava empreendida pela monarquia brasileira, a exemplo da remuneração dos pastores protestantes patrocinada pelo Governo do Brasil a partir de 1825, apesar de ser o Estado oficialmente católico. Ou, da Fala do Trono de maio de 1858, quando o Imperador Pedro II defendeu junto ao Parlamento a concessão da liberdade de culto às religiões protestantes. Tradição protestante que o Brasil já conhecera bem antes mesmo do período da ocupação holandesa em Pernambuco.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

HISTÓRIA DA CIÊNCIA, FILOSOFIA E HITORIOGRAFIA V

Durante o Primeiro Império foram criadas as faculdades de ciências jurídicas de Olinda e São Paulo e as de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, a partir da transformação dos cursos criados por D. João VI. A Regência reformou os cursos de Engenharia Civil, Militar e Naval. Já sob o Segundo Império, em 1858, a Escola Militar foi transformada em Escola Central, criando-se as seções de Ciências Naturais e Matemáticas e de Ciências Físicas e Matemáticas. Sob o ministério do Visconde do Rio Branco, a instituição foi reformada e transformada em Escola Politécnica, com os cursos de Ciências Matemáticas, Físicas e Naturais. O Visconde fundou também, em 1875, a Escola de Minas, para formar engenheiros especialistas em Mineralogia, Geologia e Minas.

HISTÓRIA DA CIÊNCIA, FILOSOFIA E HITORIOGRAFIA IV

Nassau também foi responsável pela fundação da imprensa, bibliotecas, museus e do primeiro observatório astronômico brasileiro, além de impulsionar “a arquitetura sob a inspiração de Peter Post, que traçou os planos de uma grande cidade de sobrados e canais”. O governante holandês do Brasil tropical estimulou ainda “numerosas expedições científicas” (AZEVEDO, 1994: 29).
A ciência que se praticava no Brasil na primeira metade do século XIX era fortemente influenciada pelo espírito da ciência européia desde a segunda metade do século XVIII, principalmente depois que o Marques de Pombal reformou a Universidade de Coimbra, em 1772, o que possibilitou a implantação de novos cursos, como os de Botânica, Geologia, Mineralogia e Metalurgia, criados em 1791. Foi nessa instituição portuguesa de ensino superior que se formaram importantes nomes da ciência brasileira no período: o astrônomo e geógrafo Francisco José de Lacerda e Almeida ; Azeredo Coutinho ; o explorador, médico, naturalista, geógrafo e etnógrafo Alexandre Rodrigues Ferreira ; e, o mineralogista José Bonifácio de Andrada e Silva.