sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A CIÊNCIA E O GOLPE MILITAR

A História é, por assim dizer, a forma científica de organização da memória. Esta, por ser fruto de uma escolha efetuada pela ação temporal das configurações humanas, se apresenta sob a condição de monumento. Ou, quando tomada pelos historiadores, submetida ao trabalho destes, caracterizada como documento. O historiador Jacques Le Goff lembra que a palavra latina “monumentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O monumentum é um sinal do passado... é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação...” (“Documento/Monumento”, 1984). As contribuições memorialísticas são sempre bem vindas. Principalmente, quando bem ordenadas e expostas de um modo que vai além dos limites da própria memória.
Há indícios reveladores de que, cada vez mais, os brasileiros sentem haver chegado a hora de ajustar o descompasso entre memória e história no que concerne ao período de 1964 a 1984. Em algumas situações, dentre os que estão se debruçando sobre este passado, há partícipes ativos dele. Depoentes e produtores de uma dada memória que busca persuadir a todos quanto a justeza da sua versão e desqualificar a visão do oponente.
Aqui, coloco em discussão o fato de que as análises da política científica implementada no Brasil durante vinte anos, a partir de 1964, necessitam renunciar a um certo maniqueísmo que prioriza apenas as denúncias das mazelas e produz o esquecimento de alterações fundamentais no sentido do apoio financeiro a ciência e a tecnologia e a qualificação dos serviços oferecidos nesse campo, sob padrões que até então o país desconhecia, legitimando os governantes ditatoriais junto a amplos setores da população brasileira.
Reconhecer os eventuais avanços da política de desenvolvimento científico e tecnológico implementada naquele período, não implica negar o caráter ditatorial do governo que conduzia tal política. Na verdade, significa exercer com honestidade o ofício de historiador, extraindo dos documentos escritos e orais, bem como dos múltiplos indícios iconográficos, a necessária reflexão, colocando ao alcance dos mais jovens os escaninhos que a memória insiste em esquecer, muitas vezes fugindo de polêmicas presentes nas contraditórias versões.
Esta é uma necessidade que se impõe principalmente em relação aos trabalhos acadêmicos. Em artigo publicado no ano de 2004, a pesquisadora Lucilia de Almeida Neves Delgado (“1964: temporalidade e interpretações”) revela que mesmo a bibliografia decorrente da pesquisa acadêmica tem sido razoavelmente maniqueísta. Num livro publicado em 1990 (A construção da ciência no Brasil e a SBPC) Ana Maria Fernandes afirma o seguinte: “O ano de 1964 é tomado como um ponto crucial na análise porque, se o regime militar, como conseqüência de sua própria natureza, coagiu a comunidade científica, também apoiou financeiramente a ciência e a tecnologia como nunca antes no Brasil. Esse apoio financeiro pode-se explicar pelas políticas do regime autoritário brasileiro que se baseavam no planejamento, nos tecnocratas e numa economia fortemente estatizada. Tal como foi usualmente caracterizado, o Estado militar brasileiro baseava-se numa aliança entre a burguesia nacional e internacional, os militares como grupo dirigente, e os tecnocratas” (p. 20).
É evidente que o caso da história da ciência e das suas práticas em Sergipe requer que se constitua e coloque em circulação uma memória, forma prática de oferecer as bases empíricas para a organização de um campo científico: o da História. Está é, aliás, uma questão muito antiga no Brasil.
Estudar a história da formação do campo científico no Brasil, de modo a oferecer maior clareza à constituição do conhecimento histórico quanto a esta questão é, no dizer de Marta Maria Chagas de Carvalho, em texto publicado no ano de 2002, analisar as práticas adotadas para “civilizar bárbaros, desinfetar corpos, extirpar vícios, lapidar sentimentos, apurar sensibilidades, moldar gestos e implantar hábitos de civilidade”.
Um dos problemas que requer muita atenção diz respeito ao conjunto de representações sobre a História do Brasil, disseminado a partir do movimento republicano. Dentre as idéias difundidas está presente uma quase consensual certeza de que a política científica brasileira é obra exclusiva do republicanismo, desfocando assim as discussões a respeito do problema. O Estado republicano efetuou transformações no discurso sobre o ensino e a pesquisa científica, porém não se pode afirmar que tais preocupações eram novas na sociedade brasileira.

Um comentário:

  1. JORGE, PASSANDO POR DIVERSOS BLOG ENCONTREI O SEU E ACHEI INTERESSANTE AS SUAS MATÉRIAS E RESOLVI SEGUI-LO, POIS VEJO QUE TENS IDEIAS BEM CENTRADAS E LEGAIS.

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