terça-feira, 19 de janeiro de 2010

HISTÓRIA DA CIÊNCIA, FILOSOFIA E HISTORIOGRAFIA

Certamente, boa parte dos estudos de História da Ciência foi produzida sem levar em consideração o que ocorria nos círculos acadêmicos da História. Nas suas origens, as relações mais estreitas da História da Ciência foram estabelecidas com o campo da Filosofia, o que certamente contribuiu para a produção de duas das suas marcas distintivas: a) o desinteresse dos pesquisadores de História por estudos dessa natureza; b) a manutenção da História como disciplina complementar, depositária ou auxiliar de outras.
A proximidade da História da Ciência com a Filosofia (Lógica, Epistemologia, Filosofia da Linguagem) fez com que a primeira fosse um campo estranho no interior dos estudos históricos. Contudo, a partir da segunda metade do século XX começaram a surgir trabalhos que consideram a História da Ciência a partir dos métodos e dos procedimentos próprios da História. Mas, esses estudos se depararam com um problema: a longa tradição dos estudos de História da Ciência vinculados ao campo da Filosofia fez com que quando os procedimentos metodológicos e teóricos da História fossem utilizados, já estivesse solidamente enraizado um determinado tipo de compreensão de História da Ciência, o que criou e continua criando muitas dificuldades para a sua compreensão a partir da lógica histórica.
Por isto, houve necessidade de que a História da Ciência fosse aos poucos


assimilando, filtrando e adaptando elementos da História, que combinava com outros elementos da Sociologia, da Antropologia e de várias ciências humanas. A entrada desses novos elementos no corpo da História da Ciência deu também um novo sabor aos componentes da Ciência e da Filosofia que de longa data combinavam-se para formar essa área de estudos. O resultado que temos hoje é uma História da Ciência complexa e com muitas faces, sem com isso ter se transformado numa colcha de retalhos (ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria, 1994: 9).


Em face de todas essas incorporações, surgiram novos métodos e processos adaptadores da História da Ciência ao uso de procedimentos que admitiam as contribuições procedentes de distintos campos.
A chamada Ciência Moderna começou a se delinear entre os séculos XVI e XVII. Nos séculos XVIII e XIX, as regras do saber científico ganharam mais clareza, consolidando, inclusive, o uso dos vocábulos Ciência e Cientista com o sentido que possuem contemporaneamente. Esta Ciência influenciou um conjunto de práticas civilizatórias, criando um habitus que se expressa através das mudanças nos currículos escolares, na prosperidade econômica, na incorporação de recursos tecnológicos, no estabelecimento de padrões sanitários, na adoção de regras de comportamento e valores éticos e morais. A idéia de Ciência estava imbuída de um caráter teleológico que associava a produção do conhecimento a um venturoso porvir no qual seria possível produzir a felicidade coletiva.
Nesse mesmo processo, o embate em torno da definição das origens, das regras, dos que tinham legitimidade para exercer as práticas científicas foi constituindo também uma História da Ciência. Assim, mais do que uma História, ela nasceu com o status de um discurso justificador, legitimador de um conjunto de conhecimentos. Ela não se estabeleceu como História, mas sim como manifestação de fé na Ciência. O discurso da História da Ciência muitas vezes se apresentava sob a forma de história tribunal, fazendo o julgamento dos erros e acertos que contribuíram para que a Ciência avançasse até aquele estágio ou produziram entraves que buscaram desviar o conhecimento científico daquilo que criam ser a inexorável marcha em direção ao ansiado progresso.


A História da Ciência será assim exemplo edificante para os jovens estudantes e motivo de orgulho para os cientistas. Pois, por meio dela, era possível saber como a ciência ganhou muitas batalhas contra a ignorância, a religião e o misticismo, seus eternos inimigos. Mas como a Ciência era o futuro, esse passado glorioso foi ficando cada vez mais para trás. Como se fosse um enfeite, aquilo que os professores chamam de perfumaria, a História da Ciência foi se tornando pouco importante para quem quisesse aprender ciência de verdade (ALFONSO-GOLDFARB, 1994: 12).


Os problemas enfrentados pela Ciência, principalmente a partir da metade do século XIX, quando questionamentos contundentes foram feitos a utilização do conhecimento científico em guerras que dizimaram grandes massas populacionais, fizeram com que os estudos de História da Ciência voltassem a chamar a atenção pela capacidade que revelavam como ferramentas úteis à produção de uma crítica a critérios científicos tradicionalmente aceitos. Mas, para isto era necessário que os estudos sobre História da Ciência apresentassem padrões efetivamente históricos.
À medida que assumiu tais padrões, a História da Ciência foi capaz de compreender problemas que foram apagados por um suposto caráter de continuidade próprio ao progresso científico. Assim, contribuiu para a recuperação do caráter de saber historicamente inventado e produzido socialmente pela cultura humana que tem a Ciência, ajudando a desconstruir o entendimento de Ciência como atividade à qual uns poucos gênios se dedicam para realizar grandes descobertas.
Foi deste modo que a História da Ciência começou a renunciar a um tipo de estudo de caráter eminentemente filosófico, preocupado em comparar várias teorias para esclarecer como uma derivou da outra, contando uma história atemporal na qual os renascentistas aparecem ladeados com os gregos do século V antes de Cristo. Acontece que a superação deste modo de fazer história se deu por um outro também nada histórico, que era uma espécie de fusão entre ficção científica que falava do futuro da ciência em face das maravilhas que esta criava no tempo presente. Ou seja, uma história na qual havia um grande ausente: o passado.
Um novo rumo à discussão acerca da História da Ciência foi dado pela teoria positivista de Augusto Comte (1798-1857). A teoria comteana dividia a história em três estágios: o teológico, o metafísico e o positivo. O primeiro estava embebido pelo caráter da religião, enquanto o segundo seria a expressão da Filosofia. O último dos estágios, no entanto, sintetizava a melhor etapa do desenvolvimento humano, incluindo o conhecimento das ciências da natureza na condição de modelo para as demais formas do conhecimento. Estava dada, portanto a possibilidade de desenvolvimento social a partir de parâmetros científicos. Comte definiu, com a sua teoria, os passos a serem seguidos por todas os campos da ciência, inclusive pelas chamadas ciências humanas, propondo uma ciência da vida social: a Sociologia. Mas, teve o cuidado de chamar a atenção para o fato de que as ciências são diferentes, posto que cada uma delas deve ter campo e objeto de estudo específicos.
Os ensinamentos de Comte legaram um modo de fazer história segundo o qual os estudos qualificados devem colocar em relevo as três etapas do desenvolvimento humano. Porém, esta operação deve considerar uma farta demonstração empírica, através da comprovação documental. Como, nem sempre, os que se lançaram a tal missão eram historiadores de ofício, muitas vezes os estudos sobre História da Ciência se transformaram em um infindável rosário de dados, posto que os seus escritores não estavam treinados para a operação historiográfica e desprezavam a seleção,além de não serem capazes de formular hipóteses e dirigirem às fontes perguntas pertinentes de modo a estabelecer um diálogo a partir do qual pudessem haurir o sentido da história que escreviam. Todavia, há também o processo inverso. Muitos manuais de História da Ciência dos anos 800 são verdadeiros tratados ficcionais, dissociados de qualquer tipo de documentação, com dados fantasiosos e histórias lendárias (ALFONSO-GOLDFARB, 1994: 64).
Apesar de muitas críticas que lhes são dirigidas, o modelo comteano possibilitou a produção de estudos de boa qualidade. O físico austríaco Ernest Mach (1838-1916) produziu, ainda no século XIX, um estudo no qual demonstra que os núcleos centrais do conhecimento científico se mantiveram constantes ao longo do tempo e sofreram aprimoramentos em face do desenvolvimento científico. Conseguiu demonstrar, com base na teoria de Augusto Comte, que todo o processo convergiu na direção da etapa do pensamento positivo. Não obstante a fundamentação qualificada, os críticos da obra de Mach, como Ana Maria Alfonso-Goldfarb (1994) dizem que a sua certeza teórica positivista o levou a selecionar evidências capazes unicamente de afirmar as suas hipóteses, desprezando fontes da maior importância.
Mas, talvez o melhor exemplo do tipo de história produzida por Ernest Mach seja o do físico francês Pierre Duhem, através dos trabalhos que publicou no início do século XX. Ele conseguiu localizar originais de manuscritos antigos e medievais que traduziu. Produziu uma tese segundo a qual o processo da produção do conhecimento científico é uma cadeia contínua. Através do seu trabalho, produziu a re-significação da Idade Média, oferecendo uma contribuição da maior importância aos estudos de História da Ciência (ALFONSO-GOLDFARB, 1994: 66).
Histórias como as produzidas por Ernest Mach e Pierre Duhem estavam sempre preocupadas com o mito fundador de cada um dos campos. Como aponta Ana Maria Alfonso-Goldfarb, uma espécie de história pedigree que busca os pais, os avôs, os bisavôs de cada campo, fazendo com que Isaac Newton seja visto como o pai da Física moderna, Roger Bacon o avô da experimentação, Euclides o avô da Matemática moderna (ALFONSO-GOLDFARB, 1994: 70).
Todavia, a visão que tiveram muitos pesquisadores envolvidos com o cotidiano de cada campo da ciência ao longo do século XX era o de que a História da Ciência não tinha muito a dizer. Os historiadores de ofício não eram entendidos pelos estudiosos dos distintos campos da ciência como interlocutores credenciados. Fazer História da Ciência era entendido como uma espécie de prêmio que os departamentos e escolas de ciências das universidades concediam aos cientistas mais velhos, um modo de estimular e entusiasmar jovens cientistas.


Pois se acreditava que ao alcançar a maturidade numa área de estudos, se alcançava também o mérito de poder falar sobre sua história. Caso semelhante acontecia com os grandes cientistas, que, como Albert Einstein, publicavam textos ou davam às vezes conferências sobre a evolução dos conceitos científicos. Mas tanto as aulas quanto os textos ou conferências eram vistos apenas como curiosidade ou até mesmo perfumaria. Uma forma de descanso ilustrativo para a vida dura do laboratório e da mesa de trabalho, onde a ciência acontecia de fato (ALFONSO-GOLDFARB, 1994: 70).

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