sábado, 31 de outubro de 2009

A HISTORIOGRAFIA E A POLÍTICA EDUCACIONAL DA DITADURA MILITAR

Daniel Aarão Reis fez um importante alerta chamando a atenção do quanto é difícil para a sociedade brasileira recordar o período da última ditadura militar vivida pelo país. Segundo este autor, "os brasileiros não devem se autoflagelar por isto, nem se imaginar como particularmente desmemoriados como se costuma dizer" (REIS, 2004, 49). Afinal, "nas batalhas de memória, o jogo nunca está definitivamente disputado, as areias são sempre movediças e os pontos considerados ganhos podem ser subitamente perdidos" (Idem, 30).
A bibliografia sobre a ditadura vivida pelos brasileiros no período 1930-1945 é farta o suficiente e pródiga o suficiente em anáises que apontam a crueldade e o ambiente de terror implementado pelos detentores do poder estatal, mas também em reconhecer as contradições deuma política social que inclui retrocessos e avanços, com visíveis aperfeiçoamentos na vida da população do Brasil. Contudo, em relação ao período da ditadura militar iniciada em 1964, certamente ainda não vivemos o suficiente e, por enquanto, temos sido capazes, apenas, de apontar as suas mazelas sem termos conseguido produzir análises consistentes e equilibradas a respeito da sua política educacional e dos modos como buscou se legitimar junto à população brasileira.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O BACHAREL E A AGRONOMIA

Jorge Carvalho do Nascimento[1]


Não obstante alguns esforços que têm sido feitos para produzir uma História da Agronomia e dos campos de estudo acerca da história da ciência e da tecnologia em Sergipe, ainda é necessário reunir e organizar muitas fontes importantes para uma pesquisa histórica mais consistente e o estabelecimento de linhas de pesquisa que se debrucem sobre as temáticas próprias a este campo.
A tendência modernizadora no trato com a informação, apesar de permitir a dinamização do acesso aos dados, tem imposto uma rotina de descarte documental descontrolado que leva, na maioria dos casos, ao apagamento irreversível da memória de grupos e instituições.
É necessário cobrar procedimentos metodológicos adequados. A pesquisa deve fugir da visão salvífica presente no discurso dos memorialistas. O material existente nos arquivos das instituições dedicadas à pesquisa científica e nos acervos dos arquivos históricos é múltiplo, originado de distintas fontes e inclui utensílios e equipamentos utilizados nos laboratórios científicos e tecnológicos de Sergipe e também documentação impressa, áudio-visual e imagética com significativo valor para a memória e a história da ciência e da tecnologia no Estado. É necessário explorar essa massa documental com pesquisas que tenham como fulcro de análise os processos de produção e transmissão do conhecimento científico e tecnológico.
Este artigo opera com a hipótese segundo a qual durante o século XIX foi constituído um campo intelectual em Sergipe, do qual participou um número significativo de cientistas, não obstante boa parte dos estudos sobre esse tema atribuir a formação de tal campo ao período republicano. Segundo Eugênia Andrade Vieira da Silva, estudar a intelectualidade dos anos oitocentos permite entender a falácia de alguns estudos para os quais a elite daquele período seria iletrada e detentora apenas do “poder econômico e político, sem nenhuma vinculação com o campo intelectual, o que de imediato parece algo paradoxal, pois, a suposição é a de que ninguém chega a ocupar posição de mando na sociedade sem que se utilize da capacidade mental” (A formação intelectual da elite sergipana, p. 5).
O pressuposto é o de que esta elite intelectual do século XIX, pelas suas características se sobrepunha a outros grupos, uma vez que de acordo com Carlos Almeida Barata e Antonio Henrique Cunha Bueno, o conceito de elite “designa um pequeno grupo que, num conjunto mais vasto – religioso, cultural, político, militar, econômico, social ou outro – é tido como superior pelas suas funções de mando, de direção, de orientação ou de simples representação” (Dicionário das famílias brasileiras). A elite intelectual sergipana é, assim, concebida, de acordo com Eugênia Andrade Vieira da Silva, “como sendo composta por vários grupos constituidores, oriundos de diferentes elites profissionais, que contribuíram para a formação de uma totalidade” (A formação intelectual da elite sergipana, p. 6).
Sob as condições de constituição do campo intelectual, as possibilidades da pesquisa agronômica no Brasil estão postas desde 1808, quando D. João VI criou o Instituto Botânico, no Rio de Janeiro. Na Província de Sergipe, a Agronomia conheceu os melhores estímulos ao seu desenvolvimento em face dos negócios da produção açucareira. O estudo da história desse campo do conhecimento permite, dentre outras coisas, perceber alguns dos modos usados pelos engenheiros agrônomos para a gestão científica do seu campo.
O primeiro livro sobre agronomia produzido em Sergipe foi escrito por um bacharel em Direito e proprietário do engenho Castelo dedicado ao estudo dos problemas agronômicos, principalmente o plantio da cana e a produção do açúcar. O seu autor, João José de Bittencourt Calasans, nasceu em junho de 1811, no engenho Castelo, à época município de Santa Luzia, região que atualmente corresponde ao território do município de Indiaroba. Calasans morreu em agosto de 1870, um ano após haver publicado O agricultor sergipano da cana de açúcar. Em fevereiro de 1975, quando das celebrações do IV centenário do início da colonização em Sergipe, a comissão encarregada dos festejos tentou reedita-lo sob os auspícios da então Superintendência da Agricultura e Produção – Sudap, sem que, no entanto, obtivesse êxito.
Bittencourt Calasans doutorou-se em Direito pela Universidade de Bruxelas, na Bélgica, em 1835. Após retornar a Sergipe, assumiu o comando do engenho da sua família e começou a estudar Agronomia por conta própria, lendo os principais autores então existentes, com o objetivo de modernizar a sua propriedade.



[1] Doutor em História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe – UFS. Coordena o Grupo de Pesquisa em História da Educação da UFS.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O MAL ESTAR DOS ALEMÃES

Jorge Carvalho do Nascimento[1]


Quando Albert Munck voltou casado da Alemanha, em 1911, encontrou a cidade de Laranjeiras assolada pela epidemia de varíola, o que obrigou o casal Munck a permanecer por mais de um mês em Aracaju, como hóspede da família Löeser. Em 1936 o casal mudou-se para a capital, encerrando seus negócios em Laranjeiras. Diabético, Albert Munck morreu em 1941. Sua mulher continuou vivendo na capital do Estado de Sergipe até 1976. No sítio de propriedade da família, em Laranjeiras, continua vivendo a sua filha Gisela Munck.
Os alemães procuraram ficar socialmente invisíveis em Sergipe a partir de uma série de eventos que marcaram a vida local. A mudança do eixo dinâmico da economia sergipana e da sede dos negócios da região do Vale do Cotinguiba para Aracaju, observada a partir das primeiras décadas do século XX, fez com que a presença alemã em Maruim e Laranjeiras se tornasse menos evidente.
As duas guerras mundiais da primeira metade do século XX contribuíram para o retraimento dos alemães que viviam no Brasil. Toda a atmosfera do nacional-socialismo criou um profundo mal estar não apenas para os Estados que se juntaram com o objetivo de combater a Alemanha em nome da civilização, mas também para os próprios alemães. No Brasil, várias empresas alemãs foram nacionalizadas nesse período. Um bom exemplo é o da Itabira Iron Ore, que, depois de passar às mãos de um grupo nacional transformou-se, durante a Segunda Guerra Mundial, na Companhia Vale do Rio Doce, uma empresa estatal.
O partido nazista mantinha, através de vários empresários alemães aqui estabelecidos, uma ativa seção brasileira que era coordenada pela Auslands Organisation, através da sua seção exterior sediada em Hamburgo. Até chegar à posição que assumiu de entrar na guerra ao lado dos aliados, o Brasil vivera um longo namoro com os nazistas, durante alguns anos do Estado Novo. Esse namoro incluiu um processo de xenofobia contra os judeus que levou Getúlio Vargas a entregar a romena Genny Gleizer e a alemã Olga Benário à polícia nazista. Em 1941, por exemplo, Getúlio Vargas enviara um copioso telegrama de cumprimentos a Adolf Hitler pela passagem do seu aniversário, desejando em nome do governo e do povo brasileiro, votos por sua felicidade pessoal e pela prosperidade da nação alemã,
Os alemães que viviam em Sergipe enfrentaram muitas dificuldades. Durante a I Guerra Mundial, Karl Löeser teve o seu nome inscrito em uma lista reservada e pouco esclarecida que circulou no Brasil com os nomes dos “alemães indesejáveis”, perdeu a maior parte do seu patrimônio e viu sua família regressar ao seu país de origem. No período da II Guerra, após o torpedeamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães na costa sergipana, o ambiente de comoção que se estabeleceu fez com que a polícia apurasse as relações dos alemães residentes no Estado com o movimento nazista. No inquérito aberto pelas autoridades policiais de Sergipe, foram ouvidas cinqüenta e sete pessoas. Destas, dezesseis foram indiciadas: um tcheco, um austríaco, quatro italianos e dez alemães. As principais acusações que pesavam sobre os alemães, além da colaboração com os submarinos que torpedearam os navios mercantes brasileiros, eram as de manterem reuniões secretas e importarem armas. Após as apurações, o afinador de pianos Herbert Merby recebeu, no relatório do inquérito, duras acusações do chefe de polícia, Enoque Santiago, “pelos seus modos, suas declarações arrogantes nas casas onde trabalhava e seu sistema de viver. Em cada casa em que ia consertar piano deixava sempre a marca de sua suspeita. (...). No dia em que o povo num arranco incontido invadiu a residência de Nicola, Herbert tremia de ódio, como disse o senhor Antão Correa de Andrade: ‘o governo há de pagar’. E como lhe aconselhasse que serenasse na sua cólera, ele repetiu para a dona da casa: ‘A senhora sabe o que é um alemão?’. Irreverente, incrédulo, mal educado, disse em casa do Senhor Roldão Fragoso, na rua de Laranjeiras, olhando para um quadro de Coração de Jesus, pendendo da parede, o seguinte: ‘Tire esse judeu cretino da parede’. Herbert não cessava de deprimir o Brasil, aconselhando aos filhos do senhor Antão para aprenderem a língua alemã, pois justificava: ‘A Alemanha vai tomar conta do Brasil’”.
Além de Herbert Merby, o chefe de Polícia fez também acusações a Rudolf von Doehn, por este não ser “contrário ao regime nazista. Acha que ele pode dar resultado benéfico para a Alemanha”. Acusou também a Paul Hagenbeck, sobre quem o chefe de polícia afirmara ser adepto do sistema nacional-socialista.


[1] Doutor em História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Adjunto do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Como bolsista da Fundação CAPES, foi pesquisador na Johann Wolfgang Göethe Universität-Frankfurt am Main, na República Federal da Alemanha, em 1994 e 1995.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O MANEJO DA CANA DE AÇÚCAR

Jorge Carvalho do Nascimento[2]


Durante a segunda metade do século XIX os estudos de Bittencourt Calasans (O agricultor sergipano da cana de açúcar, primeiro livro sobre Agronomia produzido em Sergipe, que começou a circular em 1869) se debruçaram sobre os solos de Sergipe e sua adequação ao plantio da cana, chegando a conclusão de que são boas para este cultivo tanto as terras de massapê quanto as chamadas areias gordas. Em outras palavras, a formação do canavial para aquele estudioso independia de ser a terra calcária, ferruginosa, arenosa ou de outra composição. A restrição feita por ele era a de que os terrenos nos quais se plantava cana não podiam ser pantanosos, mas sim deveriam ser de fácil esgotamento. A preferência recaía sobre os terrenos ditos abaulados. Os pântanos poderiam ser utilizados, desde que os agricultores se dispusessem a utilizar uma técnica que dizia ser desconhecida da agricultura sergipana: a drenagem, já amplamente utilizada na Inglaterra, Bélgica, França e Estados Unidos da América, segundo as suas anotações.
As pesquisas do autor aqui apresentado apontavam os meses de julho, agosto, setembro, outubro e novembro como os mais adequados ao plantio da cana em Sergipe. Considerava ser aquele período o de maior facilidade para lavrar o terreno, como também para manter o ciclo da cultura, de modo que as plantas amadurecessem e permitissem que os engenhos moessem ininterruptamente entre os meses de agosto a fevereiro, posto que o açúcar deveria ser colocado no mercado durante o nosso verão, quando se obtinha melhor preço. No período entre uma moagem e outra, os produtores de açúcar deveriam cuidar de culturas leguminosas, feijão, milho, arroz e mandioca.
Bittencourt Calasans discutia exaustivamente as técnicas de lavrar a terra. Para ele, as lavras profundas eram mais adequadas por protegerem o terreno do excesso de umidade e criarem elementos para que as plantas pudessem resistir aos ataques de agentes externos. Via ainda como técnica indispensável ao êxito do plantio a gradagem, através do emprego da grade de Geddes, para aplainar, ciscar e afofar a terra cortada e revirada pelo arado misturando a terra com a matéria orgânica nela existente e tornando-a porosa. Após a gradagem, os sulcos para o plantio da cana deveriam ser feitos imediatamente por arados puxados a cavalos, por serem estes mais ágeis e de melhor acabamento que os arados puxados por bois, os regos paralelos destinados ao plantio.
Dois meses após o plantio deveria ser feita a primeira limpa do canavial por um pequeno arado puxado por um cavalo. Essa técnica, chamada de abaclamento, Calasans afirma haver aprendido nos Estados Unidos da América, servindo para o expurgo de ervas daninhas. Do mesmo modo, a operação deveria ser repetida aos seis, aos oito e aos nove meses após o plantio, de modo a colaborar ainda com a remoção das folhas secas, acelerando a maturação. Após o corte, a palha deveria ser colocada entre as valas e coberta de terra, para enriquecer a matéria orgânica existente no terreno. Além disto deveria ser adicionado também o bagaço verde resultante da moagem da cana, porém fazia a ressalva de que, prioritariamente, este bagaço deveria ser queimado nas caldeiras das usinas como combustível. O autor condenava a prática de fazer queimadas nos terrenos após a colheita da cana, afirmando que este método empobrecia a terra, deixando apenas cinzas e tocos secos. Admitia, porém, essa queima, quando o canavial fosse muito antigo ou estivesse sendo vítima de ataques de pragas como besouros e lagartas.
O debate sobre mecanização agrícola costumava entusiasmar Bittencourt Calasans. Ele afirmava ser obrigatório aos plantadores de cana o uso dos arados grandes de lavrar ou de revolver no plano, denominados sub-solo número um e sub-solo número dois. Além destes, também o arado de ladeira, o arado médio, o arado de duas orelhas, o cultivador, a grade de Geddes e o rolo eram tidos como indispensáveis. O entusiasmo do autor para com a mecanização se justificava em nome do combate que este fazia ao trabalho escravo, em relação ao qual se declarava contrário. Entendia que o homem fora dotado de razão para conhecer o que mais lhe convinha. E de vontade livre para por em prática os ditames da sua razão. Privá-lo da escolha e do livre exercício do trabalho seria assim atentar ao mesmo tempo contra os direitos da sua inteligência e da sua liberdade. “Quero dizer, que o trabalho do homem deve ser livre. Sendo livre o trabalho, o obreiro pode convencionar com o empresário a paga do serviço que há de prestar; tem o dever de presta-lo” (p. 39).

[2] Doutor em História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe – UFS. Coordena o Grupo de Pesquisa em História da Educação da UFS.

domingo, 25 de outubro de 2009

A HISTORIADORA MARIA THÉTIS NUNES


Caros amigos e colegas pesquisadores:


Solicito divulgar, através das suas redes, a seguinte mensagem distribuida pelo Prof. Jorge Carvalho, da Universidade Federal de Sergipe:
É com pesar que comunico a todos os meus amigos e aos colegas pesquisadores o falecimento, na madrugada deste domingo, 25 de outubro, no Hospital São Lucas, da historiadora Maria Thétis Nunes, aos 86 anos de idade.



A HISTORIOGRAFIA DE MARIATHÉTIS NUNES




Maria Thétis Nunes trabalhou como professora e pesquisadora ininterruptamente durante os últimos 63 anos. Nesse período publicou mais de 10 livros, além de artigos e ensaios em revistas científicas. Nascida no município de Itabaiana, região do agreste do Estado de Sergipe, concluiu o seu curso de graduação na Bahia aos 22 anos de idade. Na sua estréia como intelectual concorreu à cátedra de Geografia e História do Atheneu Sergipense com a tese Os árabes: sua contribuição à civilização ocidental, acerca da civilização árabe, na qual discutiu o Islamismo, a literatura árabe, a arte muçulmana, a Filosofia e a ciência árabes, além da influência muçulmana no Brasil. A partir daí trabalhou dando aulas e dirigindo o Atheneu Sergipense até a sua mudança para o Rio de Janeiro como estagiária do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – o ISEB. Depois do Rio de Janeiro trabalhou na Argentina como Adida Cultural do Brasil, na cidade de Rosário. Ao retornar a Aracaju voltou para o Atheneu e passou a atuar também na Faculdade Católica de Filosofia até a fundação da Universidade Federal de Sergipe, onde ingressou em 1968. O seu primeiro texto foi publicado em 1945. Depois, em 1962, pela primeira vez ela se mostrou como historiadora da Educação. O seu livro sobre o ensino secundário no Brasil foi recolhido pela ditadura militar e teve a sua circulação proibida, em 1964. Em 1973 produziu o primeiro trabalho sobre a História de Sergipe. Em 1976 fez a sua primeira reflexão sobre os intelectuais, ao estudar Sílvio Romero e Manoel Bonfim. Em 1981 inventariou os documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal. Em 1984 publicou a sua História da Educação em Sergipe. Em 1984 colocou em circulação o primeiro volume da História de Sergipe Colonial. Em 2008, foi homenageada pela Sociedade Brasileira de História da Educação, durante o V Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em Aracaju.



A intérprete da História


Maria Thétis Nunes é fundamentalmente uma intérprete da História de Sergipe, debruçada sobre a análise da Economia, da vida social, das atividades lúdicas, das atividades intelectuais, dos estudos biográficos. Ao tomar posse na Academia Sergipana de Letras, em abril de 1983, ela manifestou toda a sua consciência diante da História, explicitando a sua posição ideológica:


Creio na marcha da História, no devenir, no advento de um mundo mais justo e mais humano. Apesar de ter vivido parte da minha vida sob dois regimes ditatoriais, cultuo a liberdade. (...) Também estou com os que lutam defendendo acultura ancestral, dilacerada em nome da civilização crista ocidental, como fazem os povos da África negra ou da Ásia tropical. (...) Assim tenho caminhado impulsionada pela uta e pela esperança[1].


Sua historiografia está assentada sobre a contribuição teórica do Marxismo, valorizando principalmente o diálogo com Plekhanov, a partir de quem entende estar “a organização social em equilíbrio instável, onde as forças produtivas sociais estão em crescimento”[2]. Para ela, “Labriola assinala com razão que exatamente esta instabilidade, bem como os movimentos sociais e as lutas de classes sociais por ela [a Historia] engendradas, preservam os homens da paralização intelectual”[3].
Esse modo de ler a História foi aperfeiçoado por Maria Thétis durante o período em que atuou como bolsista-estagiária do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – o ISEB. O Instituto agrupava as mais diversas tendências ideológicas, buscando interpretar a realidade nacional, de modo a arrancar o Brasil do subdesenvolvimento para levá-lo ao que os seus teóricos consideravam o desenvolvimento.
Certamente, para as reflexões acerca da História feitas por Thétis Nunes em tal período, foram muito importantes as contribuições oferecidas por Nelson Werneck Sodré, mas não é possível desconsiderar o peso dos estudos realizados no mesmo ISEB por Alberto Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto e Ignácio Rangel. Não sem propósito, é a estes que ela dedica o seu livro Ensino secundário e sociedade brasileira, publicado em 1962, resultante dos estudos que realizou no Rio de Janeiro. Alberto Guerreiro Ramos foi homenageado novamente em 1984, quando a autora colocou em circulação o livro História da Educação em Sergipe.


Os padrões de interpretação da História que Thétis Nunes incorporou no ISEB chegaram ao Brasil em face da interlocução de muitos intelectuais com o pensamento circulante na Comissão Econômica Para a América Latina – CEPAL, que funcionava no Chile desde 1948. Um desses brasileiros era Alberto Guerreiro Ramos, ao qual Thétis homenageia por tê-la ensinado a compreender e operar a lógica dialética. A historiadora sergipana assumiu dele a


concepção faseológica” de História, “a noção de que a história tem fases que se sucedem e que a adequação dos instrumentos de análise às peculiaridades da fase em que se encontra o analista corresponde a um gesto revestido de rigor científico e, acima de tudo, de compromisso político com a superação das agruras daquele momento[1].


Isso levava Guerreiro Ramos a propor a chamada redução sociológica que entusiasmou Maria Thétis Nunes. Assim, as teorias formuladas pelos teóricos das ciências humanas na Europa e nos Estados Unidos da América deveriam passar pelo crivo empírico da realidade local e somente teriam validade quando interpretadas vis-a-vis com as condições produzidas pelo capitalismo no Brasil. Foi esse entusiasmo de Maria Thétis que levou Nelson Werneck Sodré a elogiar o seu trabalho:


O condicionamento histórico fica perfeitamente claro: a cada etapa do desenvolvimento brasileiro corresponderam, necessariamente, um sistema educacional e as transformações que lhes foram próprias. (...) A professora Maria Thétis Nunes coloca esse desenvolvimento de forma clara e objetiva, situando cada uma das fases e as transformações que lhes foram próprias[2].


A historiografia de Maria Thétis Nunes tem ainda duas outras características: a primeira diz respeito à luz que lança sobre Manoel Bonfim, a quem designou “pioneiro de uma ideologia nacional”[3]; a segunda concerne a isenção com que a pesquisadora observa as relações entre o regional e o nacional, sem qualquer tensão.





[1] Cf. BARRETO, Luiz Antônio. “Maria Thétis Nunes: perfil historiográfico de uma mestra”. In: Revista do Mestrado em Educação, UFS, v. 9, p. 9-16, jul./dez. 2004. p. 14.
[2] Cf. BARRETO, Luiz Antônio. “Maria Thétis Nunes: perfil historiográfico de uma mestra”. In: Revista do Mestrado em Educação, UFS, v. 9, p. 9-16, jul./dez. 2004. p. 11.
[3] Cf. BARRETO, Luiz Antônio. “Maria Thétis Nunes: perfil historiográfico de uma mestra”. In: Revista do Mestrado em Educação, UFS, v. 9, p. 9-16, jul./dez. 2004. p. 11.
[4] Cf. FREITAS, Marcos Cezar de. “A historiografia de Maria Thétis Nunes e o ISEB”. In: Revista do Mestrado em Educação, UFS, v. 9, p. 17-24, jul./dez. 2004. p. 18.
[5] Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. “Prefácio à 1ª edição”. In: NUNES, Maria Thétis. Ensino secundário e sociedade brasileira. Aracaju: Editora UFS, 1999. p. 13.
[6] Cf. NUNES, Maria Thétis. “Manoel Bonfim: pioneiro de uma ideologia nacional”. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil na América. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 1997. 2ª edição. p. 13.


[1] Cf. FREITAS, Marcos Cezar de. “A historiografia de Maria Thétis Nunes e o ISEB”. In: Revista do Mestrado em Educação, UFS, v. 9, p. 17-24, jul./dez. 2004. p. 18.
[2] Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. “Prefácio à 1ª edição”. In: NUNES, Maria Thétis. Ensino secundário e sociedade brasileira. Aracaju: Editora UFS, 1999. p. 13.
[3] Cf. NUNES, Maria Thétis. “Manoel Bonfim: pioneiro de uma ideologia nacional”. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil na América. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 1997. 2ª edição. p. 13.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES SOBRE A BOTÂNICA EM SERGIPE DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX - II

OS INTELECTUAIS DO SÉCULO XIX


Eugênia Andrade Vieira da Silva estudou a formação da elite intelectual em Sergipe no período de 1822 a 1889 (SILVA, 2004). A partir do seu trabalho é possível afirmar que inicialmente a elite intelectual sergipana era formada no exterior. Contudo, até a metade do século, a maior parte dos portadores de diploma de graduação já era oriunda das faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro e dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo, além das escolas militares e dos seminários. O crescimento da produção açucareira em Sergipe e as outras necessidades de organização da Província estimularam a demanda por escolas superiores do Brasil e da Europa, durante toda a primeira metade do século XIX, fenômeno que persistiu também durante a segunda parte da mesma centúria. Esses estudantes eram, predominantemente, filhos da elite econômica e buscavam a legitimação como intelectuais possuidores de diplomas através da publicação de trabalhos de caráter científico.
Assim, é possível afirmar que durante o século XIX foi constituído um campo intelectual em Sergipe, do qual participou um número significativo de cientistas, não obstante boa parte dos estudos sobre esse tema atribuir a formação de tal campo ao período republicano. Estudar a intelectualidade dos anos oitocentos permite entender a falácia de alguns estudos para os quais a elite daquele período seria iletrada e detentora apenas do “poder econômico e político, sem nenhuma vinculação com o campo intelectual, o que de imediato parece algo paradoxal, pois, a suposição é a de que ninguém chega a ocupar posição de mando na sociedade sem que se utilize a capacidade mental” (SILVA, 2004, 5). O campo que se constituiu deu visibilidade aos intelectuais e permitiu a existência de uma rede de instituições escolares públicas e privadas, bem como outras organizações científicas e tecnológicas que amparavam os estudiosos. Quando se estuda o funcionamento dessas instituições no Brasil dos anos oitocentos, fica bem claro que


a institucionalização da Ciência que se acentuou no final do século XIX vinha se forjando havia tempo. Certamente, se não existissem escolas de ensino secundário e superior, museus, agremiações científicas e outras instituições por onde circulassem os conhecimentos, não haveria na sociedade o lastro científico-cultural que propiciou a ampliação significativa do quadro das instituições de cunho científico na virada do século (ALMEIDA, 2003, 31).


É importante assinalar que essa intelligentsia era composta não apenas por intelectuais portadores de diplomas emitidos pelas faculdades, mas também por estudiosos que não possuíam formação superior (SILVA, 2004, 2). No estudo de Eugênia Andrade Vieira da Silva foram selecionados 400 nomes reconhecidos à época como intelectuais. Destes, 260 eram portadores de diplomas emitidos por instituições de ensino superior, enquanto 140 não tiveram acesso a esse tipo de formação. Dentre os que obtiveram formação superior, 254 o fizeram no Brasil e apenas seis em instituições estrangeiras. Os médicos, farmacêuticos, engenheiros agrônomos, engenheiros civis e militares eram a maioria dentre os intelectuais que possuíam formação obtida em curso superior. Os que não possuíam diplomas emitidos por faculdades eram legitimados por seus pares diplomados e não diplomados que exercem o controle do campo no qual atuavam.
Era esta a elite intelectual do século XIX. Um grupo que, pelas suas características se sobrepunha a outros grupos, uma vez que o conceito de elite “designa um pequeno grupo que, num conjunto mais vasto – religioso, cultural, político, militar, econômico, social ou outro – é tido como superior pelas suas funções de mando, de direção, de orientação ou de simples representação” (BARATA e BUENO, 1999). A elite intelectual sergipana é, assim, concebida “como sendo composta por vários grupos constituidores, oriundos de diferentes elites profissionais, que contribuíram para a formação de uma totalidade” (SILVA, 2004, 6). Nessa elite intelectual, boa parte dos seus membros exerceu atividades ligadas ao campo da chamadas humanidades, principalmente os que receberam formação nas escolas de Direito e nos seminários. As atividades ligadas ao campo das chamadas ciências da natureza foram próprias, principalmente, dos que receberam formação em Medicina e Engenharia, além dos militares. Os engenheiros, contudo, adquiriram maior visibilidade social durante a segunda metade do século XIX, após a criação da Escola Politécnica, em 1874 (COELHO, 1999, 94). Autores como José Gonçalves Gondra afirmam que a ação dos médicos foi muito importante no projeto civilizatório da sociedade brasileira (GONDRA, 2000, 25). Os médicos, os farmacêuticos e os cirurgiões dentistas deram significativas contribuições para o desenvolvimento de campos científicos como a Química, a Biologia e a Botânica. Os engenheiros e os militares contribuíram com a pesquisa que viabilizou a execução de “obras básicas da modernidade do país, como as dos serviços públicos urbanos” (SILVA, 2004, 16), além de estimularem a pesquisa em campos como os da Física, da Matemática, da Geografia e da Astronomia.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES SOBRE A BOTÂNICA EM SERGIPE DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX

Jorge Carvalho do Nascimento[1]











Buscando entender o processo de organização das primeiras práticas de pesquisa científica em Sergipe, este estudo analisa algumas dificuldades metodológicas encontradas durante o processo de realização de uma pesquisa que dê conta de tal trajetória histórica. O trabalho foi delimitado temporalmente entre os anos de 1817 e 1822, por serem estes os anos durante os quais a expedição de Antonio Moniz de Souza esteve viajando pelos territórios das Capitanias da Bahia, de Sergipe D’El Rey, de Alagoas e Pernambuco, enfatizando principalmente o ano de 1818, durante o qual o pesquisador permaneceu em Sergipe. A pesquisa nasceu da necessidade de estudar a história da ciência e da tecnologia em Sergipe, para entender o funcionamento das instituições científicas e tecnológicas organizadas, que se disseminaram ao longo do século XX. Assim, procurou compreender os procedimentos científicos e tecnológicos próprios a esse tipo de atividade, o que envolve categorias analíticas capazes de estabelecer distinções e menções a teorias. A modalidade de ciência e tecnologia aqui analisada diz respeito ao modo como esse fazer era considerado no Brasil ao longo dos anos oitocentos. O ensino de ciência e tecnologia em instituições escolares não é objeto desta análise, não obstante, eventualmente, aparecerem também referências a este tipo de prática.
A ciência e a tecnologia podem ser analisadas sob diferentes aspectos. O que se propõe aqui é o entendimento das diferentes propostas e das práticas de pesquisa mais importantes que, ao longo do século XIX, marcaram a atuação dos intelectuais que habitaram esta parte do território brasileiro que é Sergipe. A participação de Sergipe no processo de organização de uma rede brasileira de práticas científicas ao longo do século XIX é um tema que não recebeu a devida atenção da produção historiográfica. Mesmo existindo alguns estudos sobre a atividade intelectual durante a centúria oitocentista, a pesquisa científica e tecnológica não tem sido objeto de estudos por parte dos pesquisadores que se dedicam a investigar a história. De um modo geral, são poucos os estudos de História que se dedicam à investigação da história da ciência e da tecnologia.
O problema que requer maior atenção nesse debate diz respeito ao conjunto de representações sobre a história do Brasil, disseminado a partir do movimento republicano. Dentre as idéias difundidas está presente uma quase consensual certeza de que as práticas científicas brasileiras são obra exclusiva do republicanismo, desfocando assim as discussões a respeito deste problema. É evidente que o Estado republicano efetuou transformações no discurso a respeito da ciência. Porém não se pode afirmar que tais preocupações e concepções eram novas na sociedade brasileira. As alterações no discurso acerca da pesquisa científica e tecnológica durante a Primeira República, além da busca de legitimação política do regime, são reveladoras do modo como os campos[2] acadêmicos buscavam legitimar-se sob a condição de serem conhecimentos científicos suficientes para a solução dos problemas da vida brasileira.
O estudo acerca da história da ciência e da tecnologia cria possibilidades de uma melhor compreensão sobre o vigoroso debate que se instalou no Brasil durante o século XIX e persistiu, atravessando as primeiras décadas do século XX. Um debate que reunia cientistas, políticos, médicos, militares, professores e outros intelectuais. Todos eles buscando apoiar-se em preceitos cientificistas.
A maior parte da bibliografia sobre o assunto produzida no Brasil prioriza o período republicano e ao fazê-lo escamoteia a importância que teve esse debate durante o século XIX em todo o país e, particularmente, na região Nordeste. Um período da maior importância, no qual o Romantismo marcou as visões de política, literatura, moral e ciência; quando a moral religiosa enfrentou o ateísmo, e o evolucionismo consolidou-se; o Segundo Império implementou o seu liberalismo e viu a decadência monárquica, ao tempo em que a unidade nacional se consolidava.


A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça, mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro (CARVALHO, 1990, 10).


Captar alguns problemas metodológicos para a compreensão das práticas civilizatórias dessa história é propósito deste artigo. O caminho escolhido remete o trabalho a olhar as práticas científicas por dentro, apanha-las, priorizando esse enfoque sem, contudo, desprezar o âmbito das suas relações com a vida social, uma vez que as práticas científicas e tecnológicas de cada sociedade correspondem a suas necessidades.
Compreender a natureza de tais práticas é fundamental para entender as propostas, os modelos e o conhecimento produzido no Brasil do século XIX; para analisar o processo de difusão do conhecimento científico e tecnológico no Brasil do século XIX; para entender o caráter que tiveram essas práticas e os padrões civilizatórios que estabeleceram. Porém, para operar assim é necessário entender que em boa parte dos estudos sobre o assunto a ciência aparece de modo assemelhado àquele que Edward Thompson dizia haver sido usado para analisar-se a lei: “na forma de um marxismo sofisticado, mas (em última instância) altamente esquemático, que, para nossa surpresa, parece brotar das pegadas daqueles que, entre nós, pertencem a uma tradição marxista mais antiga” (THOMPSON, 1987, 349). Para os adeptos desta tradição, a ciência é por definição uma parcela da “superestrutura” que se adapta às necessidades de uma infra-estrutura de forças produtivas e relações de produção. Em outras palavras, um instrumento dos grupos dominantes que define e viabiliza o domínio sobre a força de trabalho. O entendimento é o de que a ciência e a tecnologia estabelecem e legitimam formas de saber, regras e sanções que confirmam e consolidam o poder do grupo dominante. Deste modo, o poder da ciência seria o da legitimação do domínio de um grupo social. Por isto, os adeptos da teoria marxista muitas vezes entendem a ciência “como um fenômeno do poder e da hipocrisia da classe dominante” (THOMPSON, 1987, 350).
Tomar a ciência deste modo seria fazer tabula rasa do terreno da historiografia, tentando descobrir algo que pode ser conhecido sem nenhuma investigação. Daí a necessidade de abandonar alguns pressupostos correntemente aceitos. É necessário aceitar parte da crítica marxista. De fato há evidências que confirmam as funções da ciência e da tecnologia como expressão de um grupo social. Mas, é preciso considerar também a ciência em termos de sua lógica, das suas regras e dos seus próprios procedimentos. A ciência como ciência, sem a qual não é possível conceber a organização da vida em uma sociedade complexa. A ciência, “como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação) tem suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento independentes” (THOMPSON, 1987, 353).
Os estudos sobre ciência e tecnologia não podem estar subordinados a uma perspectiva teleológica. Para que a pesquisa histórica tenha significado é fundamental que o pesquisador renuncie àquilo que deseja, que acredita que deve ser ao investigar o que é e o que foi.
O processo civilizador é considerado neste trabalho a partir da abordagem de Norbert Elias (ELIAS, 1994). Ele acredita que o homem é socialmente civilizado. A civilização é o resultado de um processo ao qual as pessoas são submetidas. Elias ocupa-se da história a partir de agentes individuais que se apresentam combinados com outros em configurações específicas. Para tanto, é fértil o seu diálogo com Freud (FREUD, 1996, 15-19), uma vez que segundo este último, a inclusão do indivíduo num grupo vem acompanhada de práticas que devem ser incorporadas. Buscando a felicidade, o homem procura escapar às imposições da civilização e eliminar as práticas que lhe causam sofrimento. Mas, a realização fora dos padrões de civilidade também não é possível. Então, é preciso adotar as práticas conhecidas, utilizando-as como mecanismo de proteção.
Os procedimentos adotados por este trabalho consideram que

conceitos como indivíduo e sociedade não dizem respeito a dois objetos que existiram separadamente, mas a aspectos diferentes, embora inseparáveis, dos mesmos seres humanos (...). Ambos se revestem do caráter de processos e não há a menor necessidade, na elaboração de teorias sobre seres humanos, de abstrair-se este processo-caráter. Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias (...) que tratem de seres humanos. (...) Pode-se dizer com absoluta certeza que a relação entre o que é denominado conceitualmente de indivíduo e de sociedade permanecerá incompreensível enquanto esses conceitos forem usados como se representassem dois corpos separados, e mesmo corpos habitualmente em repouso, que só entram em contato um com o outro depois, por assim dizer (ELIAS, 1994, 220-221).


[1] Doutor em História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe – UFS.
[2] O entendimento sobre campo aqui adotado parte da perspectiva apresentada por Pierre Bourdieu: “o campo é um espaço estruturado de posições cujas propriedades dependem das posições neste espaço. (...) para que ele funcione é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, (...) que conheçam e reconheçam as leis imanentes do jogo e dos objetos de disputa. (...) A estrutura do campo é um estado de relação de forças entre os agentes ou as instituições engajadas na luta”. Cf. BOURDIEU, Pierre. 1980. p.89-91.

domingo, 18 de outubro de 2009

PROBLEMAS DE MÉTODO NOS ESTUDOS SOBRE O ENSINO AGRÍCOLA E O PROCESSO CIVILIZADOR

Jorge Carvalho do Nascimento
Doutor em História da Educação pela PUCSP
Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe

O ano era 1967. A minha idade era de onze anos, quando, após uma traquinagem, ouvi meu avô sugerir a sentença ao meu pai: “Antônio! Ou você coloca este menino no Aprendizado ou ele não vai tomar jeito de gente na vida”. Era a primeira vez que eu ouvia falar do tal Aprendizado. Várias outras vezes ao longo da minha infância e da adolescência eu voltaria a ouvir referências a respeito do Aprendizado. Todas elas remetiam para a idéia de um local de correção, uma casa de recuperação de adolescentes e jovens insubordinados. Esta representação habita o imaginário de boa parte da população do Estado de Sergipe. Principalmente de pessoas mais velhas, uma vez que a imagem da instituição somente começaria a mudar a partir da década de 1970, após a vigência da lei 5.692/71. O meu pai nunca seguiu a orientação do meu avô. Terminei trilhando outros caminhos na minha trajetória escolar, porém o Aprendizado sempre esteve à minha espreita. O meu encontro com ele aconteceu, finalmente, em 2002, enquanto pesquisava no Arquivo Geral do Poder Judiciário do Estado de Sergipe e encontrei uma queixa crime apresentada em 1953, por dois alunos da Escola Agrícola Benjamin Constant ao juiz de menores da Comarca de São Cristóvão. Estava ali, diante de mim, a prova da dureza do regime disciplinar ao qual os estudantes eram submetidos no Aprendizado.
A denominação pouco importa. Em oitenta anos, a instituição foi Patronato, Aprendizado, Escola de Iniciação Agrícola, Escola Agrícola, Colégio e Escola Agrotécnica. No imaginário ficou a marca do Aprendizado. É este o nome que a memória reconhece e que o imaginário entende como espaço capaz de regenerar o mais rebelde dos adolescentes e recuperá-lo para a vida produtiva do campo e o convívio social. É esta instituição que está aqui neste texto. Foram quase dois anos freqüentando os seus arquivos, entrevistando pessoas e fazendo anotações em outros espaços nos quais estão os registros documentais que ajudam a compreendê-la. À medida que pesquisava fui costurando os retalhos de memória diversa e buscando os elementos explicativos sobre o cotidiano daquela escola. O tempo e os seus caminhos fizeram com que muitas memórias já tivessem apagado alguns vestígios importantes. Mas, continuavam vivos muitos elementos fortuitos do cotidiano nos quais os diferentes agentes estiveram envolvidos ou testemunharam. Elementos captados através de depoimentos orais, da correspondência ou de registros existentes em documentos oficiais. Assim emergiu a memória sobre o convívio e as normas de punir, o conjunto de práticas culturais daquela escola. As memórias foram ordenadas para tentar entender a mais importante e mais duradoura instituição dedicada ao ensino agrícola em Sergipe. O trabalho é um estudo de História da Educação sob a perspectiva das contribuições de Norbert Elias para o debate a respeito do processo civilizador.

O ENSINO AGRÍCOLA EM SERGIPE

Buscando compreender o processo de organização das primeiras instituições escolares que se dedicaram ao ensino agrícola em Sergipe, este estudo analisa algumas dificuldades metodológicas encontradas durante o processo de realização de um estudo a respeito das práticas civilizatórias na trajetória histórica da Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão, desde a sua implantação, como Patronato São Maurício[1], em 1924. O trabalho foi delimitado temporalmente entre os anos de 1924 e 2004, por serem estes os anos que marcam o momento no qual se registra o início do efetivo funcionamento da primeira instituição estatal de ensino agrícola em Sergipe e a celebração dos oitenta anos de seu funcionamento ininterrupto. A pesquisa nasceu da necessidade de estudar a história do ensino agrícola, para entender o funcionamento das instituições escolares dessa natureza, que se disseminaram ao longo do século XX. Assim, buscou entender os procedimentos educacionais próprios a esse tipo de ensino, o que envolve categorias analíticas capazes de estabelecer distinções e menções a teorias. A modalidade de ensino aqui analisada diz respeito a instrução primária oferecida pelos patronatos agrícola a partir do início do século XX e, a partir da metade da mesma centúria, o ensino agrícola primário, ginasial e secundário, bem como o ensino técnico agrícola de segundo grau e de nível médio oferecido nos colégios agrícolas e nas escolas agrotécnicas. O ensino superior de agricultura, ou ensino agronômico, não é objeto desta análise, não obstante, eventualmente, aparecerem também referências a este grau de escolarização.
Os patronatos agrícolas podem ser analisados sob diferentes aspectos. O que se propõe aqui é o entendimento das diferentes propostas e das práticas escolares mais importantes que, ao longo de oitenta anos, marcaram a atuação da atual Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão. A participação de Sergipe no processo de organização de uma rede federal de escolas agrícolas é um tema que não recebeu a devida atenção da produção historiográfica. Mesmo tendo já funcionado durante todos esses anos ininterruptos, a Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão não tem sido objeto de estudos por parte dos pesquisadores que se dedicam a investigar a História da Educação. De um modo geral, são poucos os estudos de História da Educação no Brasil que se dedicam à investigação do ensino agrícola. Durante o último Congresso Brasileiro de História da Educação, de um total de 428 trabalhos aprovados pela Comissão Científica apenas três tinham como objeto o ensino agrícola[2].
Predominantemente os estudos sobre o ensino agrícola adotam duas vertentes explicativas: a primeira remete para a necessidade da formação de mão-de-obra dos trabalhadores rurais, em decorrência da abolição do trabalho escravo, enquanto a segunda aborda a questão da delinqüência infantil. “No âmbito jurídico o debate foi direcionado para as definições de menoridade e de aspectos que embasariam a aplicabilidade da legislação (menores abandonados, delinqüentes, etc.) e a incorporação ao mundo da produção, especialmente a fabril[3]”. A delinqüência estava associada ao problema da vadiagem, considerando vadios “aqueles que vivessem em casa dos pais ou tutor, mas que se mostrassem refratários a receber instrução ou entregar-se ao trabalho sério e útil, preferindo vagar pelas ruas e logradouros públicos. A vadiagem ou mendicidade, por sua vez, era categorizada em dois tipos: habitual e não-habitual”[4].
Ambas as abordagens oferecem importantes contribuições à pesquisa sobre o assunto. O entendimento normalmente aceito é o de que o ensino agrícola, ao se consolidar no Brasil através dos patronatos, apresentou dois modelos: “o escolar – voltado para o ensino profissional, educando para o trabalho agropecuário – e o correcional – regenerar por meio da vida no campo com a predominância da reclusão e da ênfase nos aspectos disciplinares”[5]. Todavia, é necessário alargar a perspectiva de interpretação da assistência à infância e adolescência pobres, buscando para ela uma maior fertilidade científica[6], tomando contribuições presentes em trabalhos que se dedicam a analisar temáticas como as dos negros, das mulheres, dos prisioneiros, da formação do campo científico e das práticas escolares no Brasil, de modo a oferecer maior clareza à constituição do conhecimento histórico quanto a esta questão. Contudo, o problema que requer maior atenção nesse debate diz respeito ao conjunto de representações sobre a história do Brasil, disseminado a partir do movimento republicano. Dentre as idéias difundidas está presente uma quase consensual certeza de que a política social brasileira é obra exclusiva do republicanismo, desfocando assim as discussões a respeito deste problema.
É evidente que o Estado republicano efetuou transformações no discurso a respeito do ensino agrícola, porém não se pode afirmar que tais preocupações e concepções eram novas na sociedade brasileira. As alterações no discurso acerca do ensino agrícola durante a Primeira República, além da busca de legitimação política do regime, são reveladoras do modo como as ciências agrárias, da mesma maneira que outros campos acadêmicos buscavam legitimar-se sob a condição de serem conhecimentos científicos suficientes para a solução dos problemas da atividade agropecuária.

O ENSINO AGRÍCOLA, A EUGENIA E A CRUZADA CIVILIZATÓRIA

O estudo acerca do ensino agrícola cria possibilidades de uma melhor compreensão sobre o vigoroso debate educacional que se instalou no Brasil durante a segunda metade do século XIX e persistiu, atravessando as primeiras décadas do século XX. Um debate que reunia juristas, políticos, médicos, clérigos, militares e professores, dentre outros. Todos eles buscando apoiar-se em preceitos cientificistas.


Tratava-se, antes de tudo, de uma verdadeira cruzada civilizatória a que se atiravam os eugenistas, estes arautos dos tempos modernos. Na sua missão, ocuparam todos os espaços possíveis: as academias médicas, as sociedades filantrópicas, as casas legislativas, as escolas, as delegacias de polícia, os tribunais de justiça, estabelecendo uma verdadeira rede de solidariedade entre discursos, instituições e personagens, entre estes o médico, o pedagogo, o jurista, os agentes do controle social repressivo, a dona de casa, o pai preocupado com o destino de sua prole[7].


Sob a inflexão eugenista, os projetos que debatiam o ensino agrícola buscaram sua inserção no âmbito do debate educacional, questão que, de resto, mobilizava amplos setores da vida social,

conquistava participantes e para a qual confluíam aspectos diversos, delineando um rol temático que integrava os investimentos das elites urbanas em luta pela hegemonia. Os patronatos agrícolas foram inseridos nesse debate ainda que numa posição subordinada: a educação dos pobres, daqueles que eram pegos nas ruas das cidades ou estavam inseridos em grupos familiares que fugiam do ideário da época. Educação menor, com outros fins que aqueles atribuídos às escolas, colégios e demais instituições educacionais[8].


Captar alguns problemas metodológicos para a compreensão das práticas civilizatórias dessa educação é propósito deste estudo. O caminho escolhido remete a pesquisa a olhar a escola por dentro, apanhar as suas práticas, priorizando esse enfoque sem, contudo, desprezar o âmbito das suas relações com a vida social do mundo exterior, uma vez que as instituições pedagógicas de cada sociedade correspondem a suas necessidades.
É necessário que os estudos sobre o ensino agrícola considerem a lei como categoria central e importante. Compreender a sua natureza é fundamental para entender as propostas, os modelos e a legislação do ensino agrícola no Brasil do século XIX; para analisar o processo de implantação das instituições de ensino agrícola no Brasil durante a primeira metade do século XX; para entender o caráter de reformatório que tiveram essas instituições e os padrões civilizatórios que estabeleceram. Porém, para operar com esta categoria de análise é necessário entender que em boa parte dos estudos sobre o ensino agrícola a lei “floresce na forma de um marxismo sofisticado, mas (em última instância) altamente esquemático, que, para nossa surpresa, parece brotar das pegadas daqueles que, entre nós, pertencem a uma tradição marxista mais antiga”[9]. Para os adeptos desta tradição, a lei é por definição uma parcela da “superestrutura” que se adapta às necessidades de uma infra-estrutura de forças produtivas e relações de produção. Em outras palavras, um instrumento dos grupos dominantes que define e viabiliza o domínio sobre a força de trabalho. O entendimento é o de que a lei determina o que é a propriedade e o que é o crime e ao assim fazê-lo estabelece as regras e sanções que confirmam e consolidam o poder do grupo dominante. Deste modo, o poder da lei é a legitimação do domínio de um grupo social. Por isto, os adeptos da teoria marxista não necessitam “ter nenhum interesse pela lei, a não ser como um fenômeno do poder e da hipocrisia da classe dominante; seu objetivo deveria ser o de simplesmente subvertê-la”[10].
Tomar a lei deste modo e utilizá-la como categoria de análise seria fazer tabula rasa do terreno da historiografia, tentando descobrir algo que pode ser conhecido sem nenhuma investigação. Daí a necessidade de abandonar alguns pressupostos correntemente aceitos. É necessário aceitar parte da crítica marxista. De fato há evidências que confirmam as funções da lei como mistificadora e expressão de um grupo social. Mas, é preciso considerar também a lei em termos de sua lógica, das suas regras e dos seus próprios procedimentos. A lei como lei, sem a qual não é possível conceber nenhuma sociedade complexa. A lei nunca foi uma necessidade dos dominantes para oprimir e muito menos os dominados tinham necessidade de legislação. A lei sempre foi um espaço de conflito e não de consenso. As relações entre os grupos são expressas, não de qualquer modo que se queira, mas através das formas da lei. E a lei, “como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação) tem suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento independentes”[11].
Os estudos sobre o ensino agrícola não podem estar subordinados a uma perspectiva teleológica. Para que a pesquisa histórica tenha significado é fundamental que o pesquisador renuncie àquilo que deseja, que acredita que deve ser ao investigar o que é e o que foi. Por isto, a observação de Edward Palmer Thompson deve ser sempre considerada:


Posso me equivocar em tudo isso. Dizem-me que, logo ali no horizonte, estão para surgir novas formas de poder operário, as quais, fundando-se em relações produtivas igualitárias, não precisarão de nenhuma restrição e poderão dispensar os impedimentos negativos do legalismo burguês. Um historiador não está qualificado para se pronunciar sobre tais projeções utópicas. Tudo o que sabe é que não pode trazer-lhes em apoio nenhuma prova histórica, qualquer que seja. Seu conselho poderia ser: observe esse novo poder por um ou dois séculos antes de render suas defesas[12].


Todavia, a análise não pode estar limitada aos horizontes da legislação, seja para negá-la ou para afirmar as suas conquistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo civilizador é considerado neste trabalho a partir da abordagem de Norbert Elias[13]. Ele acredita que o homem necessita aprender regras de etiqueta e conduta como requisitos da condição humana. E como o homem é socialmente civilizado, a civilização é o resultado de um processo ao qual as pessoas são submetidas. Elias ocupa-se da história a partir de agentes individuais que se apresentam combinados com outros em configurações específicas. Para tanto, é fértil o seu diálogo com Freud[14], uma vez que segundo este último, a inclusão do indivíduo num grupo vem acompanhada da apresentação de regras que devem ser seguidas. Buscando a felicidade, o homem procura escapar às imposições da civilização e eliminar essas regras que lhe causam sofrimento. Mas, a realização fora dos padrões de civilidade também não é possível. Então, é preciso adotar as normas, utilizando-as como mecanismo de proteção.
Os procedimentos adotados por este trabalho consideram que


conceitos como indivíduo e sociedade não dizem respeito a dois objetos que existiram separadamente, mas a aspectos diferentes, embora inseparáveis, dos mesmos seres humanos (...). Ambos se revestem do caráter de processos e não há a menor necessidade, na elaboração de teorias sobre seres humanos, de abstrair-se este processo-caráter. Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias (...) que tratem de seres humanos. (...) Pode-se dizer com absoluta certeza que a relação entre o que é denominado conceitualmente de indivíduo e de sociedade permanecerá incompreensível enquanto esses conceitos forem usados como se representassem dois corpos separados, e mesmo corpos habitualmente em repouso, que só entram em contato um com o outro depois, por assim dizer[15].


[1] O Patronato São Maurício sofreu sucessivas reformas, teve seus objetivos alterados, e atualmente funciona sob a denominação de Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão.
[2] Cf. NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. “A Pedagogia do castigo: as práticas escolares na escola agrícola Benjamin Constant”; SOARES, Ana Maria Dantas e OLIVEIRA, Lia Maria Teixeira de. “Ensino Técnico Agropecuário e formação de professores: novas perspectivas numa velha receita?”; e, RODRIGUES, Andréa Gabriel Francelino. “Escola Doméstica de Natal: signo de modernidade educacional da sociedade norte-rio grandense no século XX(1914-1945). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. 2002. Anais do II Congresso Brasileiro de História da Educação. 3 a 6 de novembro de 2002. História e memória da Educação Brasileira. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. CD Room.
[3] Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. 2003. Formar cidadãos úteis: os patronatos agrícolas e a infância pobre na Primeira República. Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco. p. 10.
[4] Cf. BRAGA, Ana Beatriz. 1993. A construção social da infância trabalhadora na Primeira República. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. p. 119.
[5] Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. Op. cit. p. 32-33.
[6] Este tipo de abordagem é adotado por autores como Milton Ramon Pires de Oliveira no seu estudo sobre os patronatos agrícolas da Primeira República. Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. Op. cit.
[7] Cf. MARQUES, Vera Regina Beltrão. 1994. A medicalização da raça. Médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas, Editora Unicamp. p. 15.
[8] Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. Op. cit. p. 58.
[9] Cf. THOMPSON, E. P. 1987. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro, Paz e Terra. p. 349.
[10] Idem. p. 350.
[11] Ibidem. p. 353.
[12] Idem, ibdem. p. 358.
[13] Cf. ELIAS. Norbert. 1994. O Processo Civilizador: uma História dos Costumes.v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
[14] Cf. FREUD, Sigmund. 1996. “O futuro de uma ilusão”. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago. p. 15-19.
[15] Cf. ELIAS, Norbert. 1991. O Processo Civilizador: uma História dos Costumes. v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 220-221.

sábado, 17 de outubro de 2009

SOBRE OS ALEMÃES EM SERGIPE

Jorge Carvalho do Nascimento[1]


É farta a bibliografia brasileira acerca da imigração alemã. Todavia, os estudos centram sua atenção principalmente sobre os três Estados da região Sul e algumas áreas da região Sudeste que receberam muitos colonos oriundos da Alemanha, principalmente no período que vai da segunda metade do século XIX até o final da Segunda Guerra Mundial, na década de 40 do século XX. A maior parte dos estudos sobre o problema construiu uma representação segundo a qual a presença alemã no Brasil estaria reduzida a essas regiões, obscurecendo as possibilidades de outras interpretações. É óbvio que, estatisticamente, a presença alemã no Sul do Brasil é bem mais expressiva que nas outras regiões. Há, contudo, muitos registros de imigrantes alemães em outras áreas do Brasil que ainda não receberam a necessária atenção dos estudiosos da história que se dedicam a este tipo de problema.
É necessário analisar com mais cuidado a importância que teve a presença alemã na região Nordeste do Brasil ao longo do século XIX, principalmente na constituição de modelos explicativos adotados por grupos que se opuseram ao regime monárquico e as suas contribuições ao desenvolvimento econômico. Tal presença é visível principalmente na Província de Pernambuco, onde se desenvolveu o movimento da chamada Escola do Recife, assentando as bases do chamado culturalismo brasileiro. O discurso da intelectualidade alemã foi apropriado por um grupo de estudantes e professores da Faculdade de Direito do Recife e ganhou força, transformando Tobias Barreto em grande expressão do movimento que é conhecido como Escola do Recife. O trabalho de Tobias Barreto levou a intelectualidade pernambucana a assumir com muito entusiasmo as idéias de teóricos alemães como Ernest Haeckel, Rudolf von Jhering, Hermann Post e Eduard von Hartman. Mas, os padrões explicativos alemães também foram fortes no movimento da Escola Tropicalista Baiana, organizada em torno da Faculdade de Medicina da Bahia. Merece menção ainda a chamada Padaria de Idéias, movimento que se organizou no Ceará em face da influência de alguns intelectuais que se formaram sob a orientação intelectual do grupo da Escola do Recife.
A colonização alemã no Brasil teve início em 1818, com a fundação da Colônia Leopoldina no município de Mucuri, sul da Bahia, pelo cônsul alemão Peter Peycke e pelos naturalistas G. W. Freireiss e Morhardt.
Dessa colônia participavam 133 pessoas. Em 1822 uma outra colônia alemã foi fundada no Vale do Peruíbe, bem próxima da Colônia Leopoldina. A Colônia Frankental, este segundo núcleo, trouxe colonos da região de Francônia. No mesmo ano, Peter Weyll criou uma outra colônia alemã na Bahia. Eram 161 pessoas que se estabeleceram na margem esquerda do rio Cachoeira, próximo ao atual município de Ilhéus. Naquela região do Estado da Bahia são comuns sobrenomes como Lorenz, Schaun, Berbert, Holenwerger e Weyll.
Dados sobre a imigração alemã no Brasil revelam que entre os anos de 1836 e 1948 entraram no país cerca de 260 mil alemães. Nesse mesmo período, os imigrantes portugueses somam 1.766.771. Os italianos representam 1.620.344 pessoas, enquanto são espanhóis 719.555 imigrantes. Apenas estes três grupos étnicos têm uma participação maior na colonização do território brasileiro que os alemães.
É necessário que os pesquisadores também comecem a oferecer contribuições para a compreensão da presença alemã em Sergipe. O tema ainda não mereceu um estudo mais aprofundado por parte dos estudiosos da história sergipana, não obstante a sua importância. Existe a possibilidade de se obter informações em diferentes fontes, como textos e documentos sobre a história de Sergipe, nos quais as referências estão dispersas. Além disso, é possível produzir levantamentos na documentação existente na embaixada e nos consulados alemães em funcionamento no Brasil e no Ministério das Relações Exteriores brasileiro, nos relatórios produzidos pelo Governo de Sergipe durante os períodos do Império e da República, bem como registros existentes na imprensa local, no Arquivo Geral do Poder Judiciário do Estado de Sergipe e na documentação privada dispersa, em poder de alemães e dos seus familiares e descendentes. .


[1] Doutor em História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Como bolsista da Fundação CAPES, foi pesquisador na Johann Wolfgang Göethe Universität-Frankfurt am Main, na República Federal da Alemanha, em 1994 e 1995.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

THÉTIS E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM SERGIPE

Até o início da década de 90 os estudos de História da Educação em Sergipe foram feitos como iniciativa individual dos pesquisadores, com especial destaque à contribuição da historiadora Maria Thétis Nunes. Sozinha, a partir da sua posição no Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, ela publicou entre os anos de 1962 e 1998, vinte e dois trabalhos importantes sobre o tema. Vale registrar os trabalhos freqüentemente publicados pela autora no jornal Gazeta de Sergipe. O seu livro História da Educação em Sergipe, apresenta a única síntese produzida até hoje sobre o assunto, tornando-se referência obrigatória dentre os estudos sergipanos da área. Assumindo interpretações de caráter marxista em seus textos, a partir de 1962, com a publicação do livro Ensino secundário e sociedade brasileira, Maria Thétis Nunes foi uma aplicada estagiária do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, no qual se ligou a intelectuais como Nelson Werneck Sodré e Álvaro Vieira Pinto. Apesar desse seu primeiro livro encontrar dificuldades para continuar circulando no Brasil sob a ditadura militar da década de 60, a autora continuou pesquisando com base na teoria marxista tal como concebida pela esquerda isebiana. Em 1984, Thétis Nunes publicou a História da Educação em Sergipe, mantendo a mesma perspectiva teórica e o mesmo rigor metodológico que assumira já no estudo de 1962. Historiadora de profissão, ao tratar da educação sob a perspectiva isebiana, Thétis adotou o viés interpretativo que diz ser a história fundamentalmente a história das lutas de classes, licenciando-se para, a partir daí, fazer uma série de operações analíticas, nas quais as evidências que extrai das fontes se prestam a localizar as relações entre burguesia e proletariado. Também para identificar os interesses que as classes dominantes defendem. Na sua interpretação assumiu os pressupostos da história monumento que Fernando de Azevedo estabeleceu, sob os quais somente se viabiliza uma política educacional consistente no Brasil depois que o campo foi dominado pela ação dos chamados “Pioneiros da Educação Nova”.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

UMA MULHER ALEMÃ EM MARUIM

Jorge Carvalho do Nascimento[1]


Um depoimento de Joel Aguiar, memorialista da vida maruinense, é bastante esclarecedor acerca da importância que teve a família alemã Schramm em Sergipe, durante o século XIX: “Os Schramm exerceram em Maruim benéfica influência e a opulência do seu viver, como também a generosidade dos seus gestos ainda hoje são conhecidos. O cônsul Otto Schramm foi, para Maruim, um símbolo de rara cultura e um edificante exemplo de que o trabalho tudo vence. Velhos de hoje, que moços freqüentaram o solar dos Schramm, narraram-me o fausto que ali resplandecia nas largas e claras salas muradas de espelhos e adornadas a rigor; no salão-refeitório, em cuja imensa, pesada e custosa mesa de jacarandá, com pitorescos entalhes, lampejavam os mais finos cristais, tinia um serviço extravagante de prata reluzente, branqueava uma enorme toalha de linho holandês e aromatizavam o ambiente todos os frutos da Europa e todas as especiarias do Oriente. Nas lácteas espáduas e nos alabastrinos colos das sonhadoras filhas do Reno e do Danúbio, rangiam as sedas asiáticas e cintilavam as pedrarias italianas. Era o alto burguesismo comercial de Bremen e de Hamburgo em toda a sua magnificência, neste retalho geográfico da América Austral”.
A dona da casa, a senhora Adolphine Schramm, considerava a sua residência aconchegante e na correspondência que enviava aos seus familiares na Alemanha a descrevia em detalhes: duas salas de estar, uma sala de jantar, quarto de dormir, o quarto de vestir do marido Ernst, o quarto de hóspedes, o quarto da empregada, um quarto grande com armários e banheira e uma grande despensa. Todos os quartos davam para um corredor que dividia a casa em duas partes. A residência era toda cercada por varandas e na parte da frente tinha dois andares. Nos fundos estavam situados a cozinha e os estábulos e na parte mais baixa ficava um grande quarto onde dormiam os escravos, a lavanderia, um quarto de passar a ferro e a despensa para vinho, cerveja e batatas. A casa era muito bem ventilada. Todo o mobiliário era de jacarandá maciço com palhinhas finas, enquanto os móveis dos quartos tinham estilo rococó com pernas recurvas, portères de tule e cortinas. Segundo Adolphine, existiam na casa 13 tipos diferentes de cadeiras de encosto e de balanço. Para administrar a residência ela contava com duas empregadas alemãs.
Além da sua casa, a alemã também gostava das noites de lua maruinenses e elogiava o céu cheio de estrelas, as frutas, os pássaros e as borboletas. Via ainda os hábitos alimentares como outro ponto alto da vida em Maruim, destacando a ótima sopa de carne que consumia diariamente, além da carne cozida com molho picante, as verduras, o maxixe, o chuchu, a abóbora, a farinha de mandioca, a galinha ao molho pardo, o enrolado de carne, os bolinhos de carne, a salada de arenque, os bolinhos de peixe, a carne assada com feijão preto, o inhame, a salada de batata, a carne de carneiro, a carne de porco. O comércio local pareceu a Adolphine Schramm um espaço adequado para se fazer boas compras.
Todo esse refinamento, contudo, não fazia a felicidade da dona da casa, como pode ser compreendido na descrição que faz José Edgard da Mota Freitas, na introdução do livro Cartas de Maruim, acerca da vida de Adolphine Schramm em Sergipe: “um pássaro numa gaiola de ouro”. Apesar de toda a estrutura residencial de que dispunha e da admiração por alguns poucos elementos naturais e pela culinária, foi muito elevado o grau de estranhamento de Adolphine em relação ao ambiente dos trópicos. E, várias vezes, expressou claramente a sua amargura: “a vida aqui está ligada a tantas privações espirituais e naturais! Com as últimas é possível se acostumar, mas, com as primeiras, sente-se cada vez mais”. Para Edgar Freitas, ela “não conseguiu adaptar-se ao rigor do clima tropical e à estreiteza do meio cultural. Essas dificuldades de adaptação afetaram-lhe (...) não só o corpo, mas também a alma. (...) As suas únicas compensações, para suportar as dificuldades do convívio numa terra distante, cujos costumes eram tão diferentes daqueles da sua terra natal e cujo clima lhe destruiu a beleza física, eram o amor do marido e a esperança de um dia retornar à Alemanha”.
Ao se manifestar sobre o seu estranhamento em relação ao ambiente, Adolphine, através da sua correspondência com seus familiares alemães, reclamava da natureza dos trópicos, que lhe parecia demasiadamente feia, em relação ao ambiente natural europeu.

[1] Doutor em História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Como bolsista da Fundação CAPES, foi pesquisador na Johann Wolfgang Göethe Universität-Frankfurt am Main, na República Federal da Alemanha, em 1994 e 1995.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A CANA DE AÇÚCAR

Após concluir o curso de Direito na Universidade de Bruxelas, na Bélgica, em 1835, João José de Bittencourt Calasans retornou a Sergipe, assumiu o comando do engenho Castelo, propriedade da sua família. Ali começou a estudar agronomia por conta própria, lendo os principais autores então existentes, com o objetivo de introduzir na sua propriedade arados, implementos agrícolas e algumas máquinas movidas a vapor. O seu interesse o levou a uma viagem de a Cuba e aos Estados Unidos da América em 1857, durante a qual buscou aperfeiçoamento em estudos a respeito dos melhores sistemas de cultura da cana e do fabrico do açúcar. Nesta viagem, demorou-se por mais tempo na Louisiana, no sul dos Estados Unidos, onde se considerava que a agricultura era mais avançada, com um maior grau de incorporação de tecnologia, tanto no plantio da cana quanto na produção de açúcar. Talvez por esta razão e pelo livro que publicou (O agricultor sergipano da cana de açúcar, primeiro livro sobre Agronomia produzido em Sergipe, que começou a circular em 1869) apareça como engenheiro agrônomo na “Relação dos cidadãos que têm governado a Província de Sergipe, desmembrada da Baía por Decreto de 8 de Julho de 1820, desde a instalação até 1889”. Bittencourt governou a Província de Sergipe durante dois dias, em 1845. Além disso, recebeu o título de Comendador da Ordem de Cristo, por haver hospedado o Imperador Pedro II em sua residência, na cidade de Estância, no ano de 1860. Membro de algumas sociedades científicas do século XIX, ele também foi dirigente do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura.
O livro que publicou está organizado em quatro capítulos, uma introdução e um resumo final à guisa de conclusão. Impresso na Bahia pela tipografia de Camillo de Lellis Masson & Companhia, o livro continha 98 páginas no formato 11 X 21,5 cm. Ainda no prólogo, o autor esclarece que ao assumir a direção do engenho Castelo estava despreparado para a missão e corria o risco de levar o empreendimento à bancarrota. Esta teria sido a razão determinante para que houvesse se lançado ao estudo dos clássicos da Agronomia e buscasse viajar ao exterior, a fim de estudar e conhecer as técnicas de plantio da cana e de fabricação do açúcar, além de adquirir a bibliografia mais atualizada. Revela também que a partir dos estudos realizados estabeleceu um método que consistia em testar as informações que as suas fontes lhe apresentavam. O passo seguinte foi o de organizar a exposição presente no texto: “Procurei ajustar as frases e as palavras do Agricultor Sergipano às inteligências de grande parte dos plantadores da cana de açúcar, e julgo ter feito alguma coisa no estado em que nos achamos, baldos até hoje de um livro prático, neste gênero, que seja mais aplicado aos nossos usos e costumes, e ao nosso clima, como este, escrito em linguagem corrente, abrangendo todas as operações e trabalhos do plantio da cana e do fabrico do seu açúcar, aí descritos minuciosamente” (p. VI).
O livro de Bittencourt Calasans se inicia com o que o autor denominou de “Parte Histórica”. Ali aparecem as origens das práticas agrícolas, numa discussão que remete aos egípicios, aos gregos, aos romanos, aos chineses e aos persas, antes de chegar ao Brasil. Também faz uma exposição sobre a cana de açúcar, suas origens e suas espécies, revelando que a primeira espécie de cana aqui introduzida foi a Caiana, no Rio de Janeiro, em 1570, por Mem de Sá. Posteriormente, o marquês de Barbacena mandou buscar na Jamaica as espécies Malabar e Batávia. Diz que desde o século XIII a planta é conhecida na Arábia, tendo daí se expandido para a Síria, Chipre, Turquia e Sicília. Depois, foi levada pelos portugueses desde a Sicília até as ilhas da Madeira, de Porto Santo e São Tomé. Os espanhóis a trouxeram para a América, plantando-a em São Domingos, a partir de 1506.
O autor produz um diagnóstico do plantio da cana e do fabrico do açúcar no país, identificando um completo atraso nas suas técnicas, defendendo a necessidade da difusão dos saberes da ciência agronômica no Brasil. Para ele, uma das primeiras necessidades era a da substituição da cana Caiana pelas espécies Salangor e Transparente. A espécie Salangor, entendia Calasans, produzia um caldo abundante, doce e fácil de clarificar, resultando num açúcar alvo e de boa granulação. Do mesmo modo, a cana Transparente que, ademais, tinha a facilidade de crescer também em terrenos arenosos e fracos. Sugere também o plantio da cana China, por ser dura e resistente à seca, induzindo que ela deveria ser plantada ao redor dos canaviais.

NOTAS PARA UM ESTUDO SOBRE A IMIGRAÇÃO ALEMÃ EM SERGIPE VII

EPÍLOGO: A PRODUÇÃO DA INVISIBILIDADE


Os alemães começaram a ficar invisíveis em Sergipe a partir de uma série de eventos que marcaram a vida local. A mudança do eixo dinâmico da economia sergipana e da sede dos negócios da região do Vale do Cotinguiba para Aracaju, observada a partir das primeiras décadas do século XX, fez com que a presença alemã em Maruim e Laranjeiras se tornasse menos evidente.
As duas guerras mundiais da primeira metade do século XX contribuíram para o retraimento dos alemães que viviam no Brasil. Toda a atmosfera do nacional-socialismo criou um profundo mal estar não apenas para os Estados que se juntaram com o objetivo de combater a Alemanha em nome da civilização, mas também para os próprios alemães. No Brasil, várias empresas alemãs foram nacionalizadas nesse período. Um bom exemplo é o da Itabira Iron Ore, que, “depois de passar às mãos de um grupo nacional transformou-se, durante a Segunda Guerra Mundial, na Companhia Vale do Rio Doce, uma empresa estatal” (MORAIS, 1994, 125). O partido nazista mantinha, através de vários empresários alemães aqui estabelecidos, uma ativa seção brasileira que era coordenada pela Auslands Organisation, através da sua seção exterior sediada em Hamburgo. Até chegar à posição que assumiu de entrar na guerra ao lado dos aliados, o Brasil vivera um longo namoro com os nazistas, durante alguns anos do Estado Novo. Esse namoro incluiu um processo de xenofobia contra os judeus que levou Getúlio Vargas a entregar a romena Genny Gleizer e a alemã Olga Benário à polícia nazista. Em 1941, por exemplo, Getúlio Vargas enviara um copioso telegrama de cumprimentos a Adolf Hitler pela passagem do seu aniversário, “desejando em nome do governo e do povo brasileiro, votos por sua felicidade pessoal e pela prosperidade da nação alemã” (MORAIS, 1994, 431).
Os alemães que viviam em Sergipe, também enfrentaram dificuldades. Durante a I Guerra Mundial, Karl Löeser teve o seu nome inscrito em uma lista reservada e pouco esclarecida que circulou no Brasil com os nomes dos “alemães indesejáveis”, perdeu a maior parte do seu patrimônio e viu sua família regressar ao seu país de origem. No período da II Guerra, após o torpedeamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães na costa sergipana, o ambiente de comoção que se estabeleceu fez com que a polícia apurasse as relações dos alemães residentes no Estado com o movimento nazista. No inquérito aberto pelas autoridades policiais de Sergipe, foram ouvidas cinqüenta e sete pessoas. Destas, dezesseis foram indiciadas: um Tcheco, um austríaco, quatro italianos e dez alemães. As principais acusações que pesavam sobre os alemães além da colaboração com os submarinos que torpedearam os navios mercantes brasileiros, eram a de manterem reuniões secretas e importarem armas (SANTIAGO, 1942, 2). Após as apurações, o afinador de pianos Herbert Merby recebeu duras acusações do chefe de polícia, Enoque Santiago,


pelos seus modos, suas declarações arrogantes nas casas onde trabalhava e seu sistema de viver. Em cada casa em que ia consertar piano deixava sempre a marca de sua suspeita. (...) No dia em que o povo num arranco incontido invadiu a residência de Nicola[i], Herbert tremia de ódio, como disse o senhor Antão Correa de Andrade: “o governo há de pagar”. E como lhe aconselhasse que serenasse na sua cólera, ele repetiu para a dona da casa: “A senhora sabe o que é um alemão?”. Irreverente, incrédulo, ma educado, disse em casa do Senhor Roldão Fragoso, na rua de Laranjeiras, olhando para um quadro de Coração de Jesus, pendendo da parede, o seguinte: “Tire esse judeu cretino da parede”. Herbert não cessava de deprimir o Brasil, aconselhando aos filhos do senhor Antão para aprenderem a língua alemã pois justificava: “A Alemanha vai tomar conta do Brasil” (SANTIAGO, 1942, 3-4).


Além de Herbert Merby, o chefe de Polícia fez também acusações a Rudolf von Doehn, por este não ser “contrário ao regime nazista. Acha que ele pode dar resultado benéfico para a Alemanha”; Paul Hagenbeck, sobre quem o chefe de polícia afirmara ser adepto do sistema nacional-socialista; Gunther Schmekel, responsável pelos negócios do Consulado Alemão da Bahia em Sergipe, também visto por Enoque Santiago como nazista. (SANTIAGO, 1942, 5-6).
Walter Löeser, filho de Karl, permaneceu preso em Aracaju, durante 32 dias, em 1941, sem nenhuma acusação contra ele. Sobre Walter pesavam apenas algumas suspeitas, principalmente pelo fato de haver lutado no Exército Alemão durante a I Guerra e haver recebido, como oficial, uma condecoração: a Cruz de Ferro (RODDEWIG, 2001).
Apesar de todas as acusações que fez, o chefe de polícia afirmou que somente obtivera provas suficientes para incriminar Herbert Merby, deixando de encaminhar ao Ministério Público os nomes dos demais acusados. Além disto, inocentou plenamente os alemães Otto Apenburg, Otto Karl Weide, Frei Euzébio Walter, Oscar Besthner e Oscar Backhaus (SANTIAGO, 1942, 6).
A entrada do Brasil na guerra, ao lado dos aliados, veio empacotada em alguns negócios que o governo do Estado Novo conseguiu realizar com os norte-americanos e também pela expropriação de todo o capital alemão investido no país.


Meses antes do embarque das tropas brasileiras para a Itália, em 1944, o governo brasileiro, em guerra com a Alemanha e Itália, baixou um decreto expropriando todos os bens dos chamados “súditos do Eixo”. Ou seja, toda empresa instalada no Brasil cujo controle estivesse nas mãos de capitais italianos, alemães ou japoneses passava a pertencer ao Estado brasileiro – mais especificamente, ao Banco do Brasil. Cumpridas as formalidades legais da expropriação, o banco passou a realizar leilões públicos das empresas (MORAIS, 1994, 435).


O confisco da empresas alemãs era visto como uma necessidade, pois, segundo as afirmações de autoridades policiais brasileiras, os nazistas atuavam no território do Brasil disfarçados de “amigos comerciais da Alemanha” (SANTIAGO, 1942, 2). Todos os alemães foram obrigados a um depósito obrigatório, de acordo com a fortuna pessoal de cada um, recolhido ao Banco do Brasil. De acordo com o Decreto-Lei 4.166, de 11 de março de 1942, tais recursos permaneciam à disposição da Agência Especial de Defesa Econômica do Brasil, para uma possível indenização ou reparação de guerra, sem vencer juros. Apenas para exemplificar, em Sergipe, somente Paul Hagenbeck foi obrigado a depositar Cr$ 35.724,50 (Trinta e cinco mil, setecentos e vinte e quatro cruzeiros e cinqüenta centavos)[ii] (SERGIPE, 1949).
Para entender porque, não obstante a forte presença alemã em Sergipe desde a metade do século XIX, são poucos os estudos existentes a respeito do tema, é necessário considerar com Jacques Le Goff que


O que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores (LE GOFF, 1984, 95).


As circunstâncias do processo político fizeram com que a própria comunidade alemã buscasse uma posição social mais discreta e menos visível, após as duas grandes guerras, buscando confundir-se, tanto quanto possível, com os grupos locais. Por outro lado, a imagem que se construiu dos alemães, em função das tragédias vividas em face do nacional-socialismo, fez com que a vida social brasileira, em comunidades nas quais eles não eram majoritários, tivessem maiores reservas no seu relacionamento com eles.


NOTAS

[i] O empresário italiano Nicola Mandarino foi acusado de ser um entusiasta dos países do Eixo, de possuir equipamento de rádio-transmissão e de hospedar em sua fazenda, no município de Itaporanga, tripulantes do submarino alemão que torpedeou os navio mercante brasileiro Baependi. No dia em que circulou na cidade de Aracaju a notícia do torpedeamento, a população se dirigiu à sua residência que foi depredada. Nicola Mandarino e sua família foram salvos pela Polícia, que conseguiu retira-los em segurança e leva-los à sua fazenda em Itaporanga d’Ajuda (SANTIAGO, 1942, 2).
[ii] Apenas para que se possa estimar o valor de tal montante, com essa importância, na década de 40 do século XX, era possível comprar 75 bois da raça Indubrasil.


BIBLIOGRAFIA


AGUIAR, Joel. Traços da história de Maroim. 2ª. Ed. Aracaju, Secretaria de Estado da Cultura, 2004.

ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. “Marie Lassius, uma preceptora alemã em Sergipe”. In: Cadernos UFS História da Educação. vol. V, Fascículo 1, 2003. p. 67-78.

AVÉ-ALLEMANT, Robert. “Excursão à Província de Sergipe. Viajando para Aracaju no Rio Cotinguiba. Maruim”. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, nº 26, Vol. XXI, 1961.

BASTO, Fernando Lázaro de Barros. Síntese da história da imigração no Brasil. Rio de Janeiro, [s.n.], 1970.

FREITAS, José Edgard da Mota. Cartas de Maruim. Aracaju, Universidade Federal de Sergipe, 1991.

LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In: Enciclopédia Einaudi. I. Memória-História. Porto, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.

MORAIS, Fernando. Chatô. O rei do Brasil. A vida de Assis Chateaubriand, um dos brasileiros mais poderosos deste século. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. A cultura ocultada ou a influência alemã durante a segunda metade do século XIX. Londrina, Editora UEL, 1999.

PASSOS Subrinho, Josué Modesto dos. Reordenamento do trabalho: trabalho escravo e trabalho livre no Nordeste açucareiro. Sergipe 1850-1930. Aracaju, Funcaju, 2000.

RODDEWIG, Wolfgang. “Uma tentativa de colonização malograda”. (Inédito).

. “Alemães em Sergipe”. (Inédito).

. “Os Munck”. (Inédito).

. “Os Hagenbeck”. (Inédito).

. “Os Löeser”. (Inédito).

SANTIAGO, Enoque. Relatório do inquérito instaurado neste Departamento em conseqüência dos torpedeamentos de cinco navios brasileiros, e no qual se acham envolvidos vários estrangeiros (alemães e italianos). Aracaju, Departamento de Segurança Pública, 1942.

SERGIPE. Diário Oficial do Estado de Sergipe. Aracaju, Imprensa Oficial, 1924.

SERGIPE. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 7 de setembro de 1923, ao instalar-se a Primeira Sessão Ordinária da Décima Quinta Legislatura, pelo Dr. Maurício Graccho Cardoso, Presidente do Estado. Aracaju, Imprensa Oficial, 1923.

SERGIPE. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 7 de setembro de 1924, ao instalar-se a Segunda Sessão Ordinária da Décima Quinta Legislatura, pelo Dr. Maurício Graccho Cardoso, Presidente do Estado. Aracaju, Imprensa Oficial, 1924.

SERGIPE. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 7 de setembro de 1925, ao instalar-se a Terceira Sessão Ordinária da Décima Quinta Legislatura, pelo Dr. Maurício Graccho Cardoso, Presidente do Estado. Aracaju, Imprensa Oficial, 1925.

SERGIPE. ESTADO DE SERGIPE. COMARCA E LARANJEIRAS. DISTRITO JUDICIAL DE LARANJEIRAS. JUIZ DE DIREITO DA COMARCA DE LARANJEIRAS. Inventário de Paul Hagenbeck, falecido na cidade do Rio de Janeiro, no dia 20 de setembro próximo passado. 1949.

SILVA, Maria Lúcia Marques Cruz e. Inventário cultural de Maruim. Aracaju, Secretaria Especial de Cultura, 1994.

VAGO, Tarcísio Mauro. Cultura escolar, cultivo de corpos: Educação Physica Gimnastica como práticas constitutivas dos corpos de crianças no ensino público primário de Belo Horizonte (1906-1920). Bragança Paulista, EDUSF, 2002.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

NOTAS PARA UM ESTUDO SOBRE A IMIGRAÇÃO ALEMÃ EM SERGIPE VI

A FAMÍLIA MUNCK


O engenheiro mecânico Karl Albert Gustav Munck chegou a Laranjeiras em 1907, aos 26 anos de idade, com o objetivo de trabalhar na montagem de máquinas dos engenhos de cana de açúcar. Voltou à Alemanha quatro anos depois, por poucos dias, para casar com Ana Hodewig Julia Roessung. Fixado definitivamente em Sergipe, com sua esposa, em 1918 criou uma companhia elétrica e firmou um contrato para instalar e manter a iluminação elétrica pública das casas e das ruas laranjeirenses, movida por motor Deutz a gasogênio que importara da Alemanha. Conhecia bem o município e a sua sede, tendo àquela altura já montado as máquinas de mais de 40 usinas açucareiras. Na sua oficina mecânica trabalhavam mais de 150 operários, e dentre as inovações da modernidade que introduzira em Sergipe, se incluía a fabricação de gelo. Representante da empresa alemã Maschinenfabrik Sangar Hausen, especializada na fabricação de equipamentos para engenhos e usinas de açúcar, trouxe do seu país dois outros mecânicos: Adolph Bergeher e Hans Schudler, que o auxiliavam no trabalho de montagem dos equipamentos. Quando voltou casado da Alemanha, em 1911, encontrou a cidade de Laranjeiras assolada pela epidemia de varíola, o que obrigou o casal Munck a permanecer por mais de um mês em Aracaju, como hóspedes da família Löeser. Em 1936 o casal mudou-se para a capital, encerrando seus negócios em Laranjeiras. Diabético, Albert Munck morreu em 1941. Sua mulher continuou vivendo na capital do Estado de Sergipe até 1976. No sítio de propriedade da família, em Laranjeiras, continua vivendo a sua filha Gisela Munck (RODDEWIG, 2001).

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

NOTAS PARA UM ESTUDO SOBRE A IMIGRAÇÃO ALEMÃ EM SERGIPE V

A FAMÍLIA HAGENBECK


O agrônomo, especialista em culturas tropicais, Paul Hagenbeck tinha vinte e três anos de idade quando chegou ao Brasil, em 1911. O seu interesse pelo Estado de Sergipe ocorreu através de uma tia sua que morava em Laranjeiras e mantinha boas relações de amizade com Otto Jungklausen. Paul vislumbrara a oportunidade de ganhar dinheiro explorando o seu conhecimento a respeito das plantações nos trópicos e logo após a sua chegada começou a arrendar terras, plantando algodão e cana de açúcar. Ao final da I Guerra, em associação com dois outros teutos que viviam em Laranjeiras, Alfredo e Waldemar Suadicanis, iniciou a exploração da Fazenda Varzinhas, ainda hoje propriedade dos seus descendentes.
Casou, em 1923, com Juliana Elisabete Roddewig, também alemã, que conhecera na residência da família Munck, alemães que também residiam em Laranjeiras. Aliás, é recorrente entre as primeiras gerações de alemães que viveram em Sergipe o hábito de casar com compatriotas, talvez como estratégia de preservação dos seus padrões culturais. A única exceção encontrada até agora nos registros consultados diz respeito a Oscar Backhaus, que casou com uma negra sergipana (RODDEWIG, 2001).
Nas relações dos alemães com a comunidade local, uma outra característica era a de assumir um nome mais facilmente pronunciável pelos sergipanos. Assim, um dos filhos de Paul Hagenbeck, Hans Otto, era conhecido pela comunidade laranjeirense como João da Varzinhas. A sua mãe, Juliana Elisabete Roddewig, era conhecida em Laranjeiras como Else e viera para o Brasil em 1913, a fim de trabalhar como preceptora dos filhos de uma família da cidade paulista de Piracicaba. Dispensada da função em 1914, após o início da I Guerra, veio para Laranjeiras contratada como preceptora dos filhos da família Munck.Paul Hagenbeck adquiriu as cotas de Alfred Suadicanis na Varzinhas, em 1936. Ali viveu com Else e criou os quatro filhos, preservando hábitos culturais da sua terra, mantendo uma biblioteca com mais de mil livros em alemão, plantando batata, produzindo conservas, manteiga, pão e queijo, além de defumar os derivados da carne de porco. A família convivia com a comunidade alemã existente em Sergipe, como o representante da companhia aérea Condor, engenheiros que trabalhavam nas usinas de açúcar existentes no Estado, operários especializados e comerciantes (RODDEWIG, 2001).