segunda-feira, 19 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES SOBRE A BOTÂNICA EM SERGIPE DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX

Jorge Carvalho do Nascimento[1]











Buscando entender o processo de organização das primeiras práticas de pesquisa científica em Sergipe, este estudo analisa algumas dificuldades metodológicas encontradas durante o processo de realização de uma pesquisa que dê conta de tal trajetória histórica. O trabalho foi delimitado temporalmente entre os anos de 1817 e 1822, por serem estes os anos durante os quais a expedição de Antonio Moniz de Souza esteve viajando pelos territórios das Capitanias da Bahia, de Sergipe D’El Rey, de Alagoas e Pernambuco, enfatizando principalmente o ano de 1818, durante o qual o pesquisador permaneceu em Sergipe. A pesquisa nasceu da necessidade de estudar a história da ciência e da tecnologia em Sergipe, para entender o funcionamento das instituições científicas e tecnológicas organizadas, que se disseminaram ao longo do século XX. Assim, procurou compreender os procedimentos científicos e tecnológicos próprios a esse tipo de atividade, o que envolve categorias analíticas capazes de estabelecer distinções e menções a teorias. A modalidade de ciência e tecnologia aqui analisada diz respeito ao modo como esse fazer era considerado no Brasil ao longo dos anos oitocentos. O ensino de ciência e tecnologia em instituições escolares não é objeto desta análise, não obstante, eventualmente, aparecerem também referências a este tipo de prática.
A ciência e a tecnologia podem ser analisadas sob diferentes aspectos. O que se propõe aqui é o entendimento das diferentes propostas e das práticas de pesquisa mais importantes que, ao longo do século XIX, marcaram a atuação dos intelectuais que habitaram esta parte do território brasileiro que é Sergipe. A participação de Sergipe no processo de organização de uma rede brasileira de práticas científicas ao longo do século XIX é um tema que não recebeu a devida atenção da produção historiográfica. Mesmo existindo alguns estudos sobre a atividade intelectual durante a centúria oitocentista, a pesquisa científica e tecnológica não tem sido objeto de estudos por parte dos pesquisadores que se dedicam a investigar a história. De um modo geral, são poucos os estudos de História que se dedicam à investigação da história da ciência e da tecnologia.
O problema que requer maior atenção nesse debate diz respeito ao conjunto de representações sobre a história do Brasil, disseminado a partir do movimento republicano. Dentre as idéias difundidas está presente uma quase consensual certeza de que as práticas científicas brasileiras são obra exclusiva do republicanismo, desfocando assim as discussões a respeito deste problema. É evidente que o Estado republicano efetuou transformações no discurso a respeito da ciência. Porém não se pode afirmar que tais preocupações e concepções eram novas na sociedade brasileira. As alterações no discurso acerca da pesquisa científica e tecnológica durante a Primeira República, além da busca de legitimação política do regime, são reveladoras do modo como os campos[2] acadêmicos buscavam legitimar-se sob a condição de serem conhecimentos científicos suficientes para a solução dos problemas da vida brasileira.
O estudo acerca da história da ciência e da tecnologia cria possibilidades de uma melhor compreensão sobre o vigoroso debate que se instalou no Brasil durante o século XIX e persistiu, atravessando as primeiras décadas do século XX. Um debate que reunia cientistas, políticos, médicos, militares, professores e outros intelectuais. Todos eles buscando apoiar-se em preceitos cientificistas.
A maior parte da bibliografia sobre o assunto produzida no Brasil prioriza o período republicano e ao fazê-lo escamoteia a importância que teve esse debate durante o século XIX em todo o país e, particularmente, na região Nordeste. Um período da maior importância, no qual o Romantismo marcou as visões de política, literatura, moral e ciência; quando a moral religiosa enfrentou o ateísmo, e o evolucionismo consolidou-se; o Segundo Império implementou o seu liberalismo e viu a decadência monárquica, ao tempo em que a unidade nacional se consolidava.


A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça, mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro (CARVALHO, 1990, 10).


Captar alguns problemas metodológicos para a compreensão das práticas civilizatórias dessa história é propósito deste artigo. O caminho escolhido remete o trabalho a olhar as práticas científicas por dentro, apanha-las, priorizando esse enfoque sem, contudo, desprezar o âmbito das suas relações com a vida social, uma vez que as práticas científicas e tecnológicas de cada sociedade correspondem a suas necessidades.
Compreender a natureza de tais práticas é fundamental para entender as propostas, os modelos e o conhecimento produzido no Brasil do século XIX; para analisar o processo de difusão do conhecimento científico e tecnológico no Brasil do século XIX; para entender o caráter que tiveram essas práticas e os padrões civilizatórios que estabeleceram. Porém, para operar assim é necessário entender que em boa parte dos estudos sobre o assunto a ciência aparece de modo assemelhado àquele que Edward Thompson dizia haver sido usado para analisar-se a lei: “na forma de um marxismo sofisticado, mas (em última instância) altamente esquemático, que, para nossa surpresa, parece brotar das pegadas daqueles que, entre nós, pertencem a uma tradição marxista mais antiga” (THOMPSON, 1987, 349). Para os adeptos desta tradição, a ciência é por definição uma parcela da “superestrutura” que se adapta às necessidades de uma infra-estrutura de forças produtivas e relações de produção. Em outras palavras, um instrumento dos grupos dominantes que define e viabiliza o domínio sobre a força de trabalho. O entendimento é o de que a ciência e a tecnologia estabelecem e legitimam formas de saber, regras e sanções que confirmam e consolidam o poder do grupo dominante. Deste modo, o poder da ciência seria o da legitimação do domínio de um grupo social. Por isto, os adeptos da teoria marxista muitas vezes entendem a ciência “como um fenômeno do poder e da hipocrisia da classe dominante” (THOMPSON, 1987, 350).
Tomar a ciência deste modo seria fazer tabula rasa do terreno da historiografia, tentando descobrir algo que pode ser conhecido sem nenhuma investigação. Daí a necessidade de abandonar alguns pressupostos correntemente aceitos. É necessário aceitar parte da crítica marxista. De fato há evidências que confirmam as funções da ciência e da tecnologia como expressão de um grupo social. Mas, é preciso considerar também a ciência em termos de sua lógica, das suas regras e dos seus próprios procedimentos. A ciência como ciência, sem a qual não é possível conceber a organização da vida em uma sociedade complexa. A ciência, “como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação) tem suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento independentes” (THOMPSON, 1987, 353).
Os estudos sobre ciência e tecnologia não podem estar subordinados a uma perspectiva teleológica. Para que a pesquisa histórica tenha significado é fundamental que o pesquisador renuncie àquilo que deseja, que acredita que deve ser ao investigar o que é e o que foi.
O processo civilizador é considerado neste trabalho a partir da abordagem de Norbert Elias (ELIAS, 1994). Ele acredita que o homem é socialmente civilizado. A civilização é o resultado de um processo ao qual as pessoas são submetidas. Elias ocupa-se da história a partir de agentes individuais que se apresentam combinados com outros em configurações específicas. Para tanto, é fértil o seu diálogo com Freud (FREUD, 1996, 15-19), uma vez que segundo este último, a inclusão do indivíduo num grupo vem acompanhada de práticas que devem ser incorporadas. Buscando a felicidade, o homem procura escapar às imposições da civilização e eliminar as práticas que lhe causam sofrimento. Mas, a realização fora dos padrões de civilidade também não é possível. Então, é preciso adotar as práticas conhecidas, utilizando-as como mecanismo de proteção.
Os procedimentos adotados por este trabalho consideram que

conceitos como indivíduo e sociedade não dizem respeito a dois objetos que existiram separadamente, mas a aspectos diferentes, embora inseparáveis, dos mesmos seres humanos (...). Ambos se revestem do caráter de processos e não há a menor necessidade, na elaboração de teorias sobre seres humanos, de abstrair-se este processo-caráter. Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias (...) que tratem de seres humanos. (...) Pode-se dizer com absoluta certeza que a relação entre o que é denominado conceitualmente de indivíduo e de sociedade permanecerá incompreensível enquanto esses conceitos forem usados como se representassem dois corpos separados, e mesmo corpos habitualmente em repouso, que só entram em contato um com o outro depois, por assim dizer (ELIAS, 1994, 220-221).


[1] Doutor em História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe – UFS.
[2] O entendimento sobre campo aqui adotado parte da perspectiva apresentada por Pierre Bourdieu: “o campo é um espaço estruturado de posições cujas propriedades dependem das posições neste espaço. (...) para que ele funcione é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, (...) que conheçam e reconheçam as leis imanentes do jogo e dos objetos de disputa. (...) A estrutura do campo é um estado de relação de forças entre os agentes ou as instituições engajadas na luta”. Cf. BOURDIEU, Pierre. 1980. p.89-91.

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