domingo, 18 de outubro de 2009

PROBLEMAS DE MÉTODO NOS ESTUDOS SOBRE O ENSINO AGRÍCOLA E O PROCESSO CIVILIZADOR

Jorge Carvalho do Nascimento
Doutor em História da Educação pela PUCSP
Professor do Departamento de História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe

O ano era 1967. A minha idade era de onze anos, quando, após uma traquinagem, ouvi meu avô sugerir a sentença ao meu pai: “Antônio! Ou você coloca este menino no Aprendizado ou ele não vai tomar jeito de gente na vida”. Era a primeira vez que eu ouvia falar do tal Aprendizado. Várias outras vezes ao longo da minha infância e da adolescência eu voltaria a ouvir referências a respeito do Aprendizado. Todas elas remetiam para a idéia de um local de correção, uma casa de recuperação de adolescentes e jovens insubordinados. Esta representação habita o imaginário de boa parte da população do Estado de Sergipe. Principalmente de pessoas mais velhas, uma vez que a imagem da instituição somente começaria a mudar a partir da década de 1970, após a vigência da lei 5.692/71. O meu pai nunca seguiu a orientação do meu avô. Terminei trilhando outros caminhos na minha trajetória escolar, porém o Aprendizado sempre esteve à minha espreita. O meu encontro com ele aconteceu, finalmente, em 2002, enquanto pesquisava no Arquivo Geral do Poder Judiciário do Estado de Sergipe e encontrei uma queixa crime apresentada em 1953, por dois alunos da Escola Agrícola Benjamin Constant ao juiz de menores da Comarca de São Cristóvão. Estava ali, diante de mim, a prova da dureza do regime disciplinar ao qual os estudantes eram submetidos no Aprendizado.
A denominação pouco importa. Em oitenta anos, a instituição foi Patronato, Aprendizado, Escola de Iniciação Agrícola, Escola Agrícola, Colégio e Escola Agrotécnica. No imaginário ficou a marca do Aprendizado. É este o nome que a memória reconhece e que o imaginário entende como espaço capaz de regenerar o mais rebelde dos adolescentes e recuperá-lo para a vida produtiva do campo e o convívio social. É esta instituição que está aqui neste texto. Foram quase dois anos freqüentando os seus arquivos, entrevistando pessoas e fazendo anotações em outros espaços nos quais estão os registros documentais que ajudam a compreendê-la. À medida que pesquisava fui costurando os retalhos de memória diversa e buscando os elementos explicativos sobre o cotidiano daquela escola. O tempo e os seus caminhos fizeram com que muitas memórias já tivessem apagado alguns vestígios importantes. Mas, continuavam vivos muitos elementos fortuitos do cotidiano nos quais os diferentes agentes estiveram envolvidos ou testemunharam. Elementos captados através de depoimentos orais, da correspondência ou de registros existentes em documentos oficiais. Assim emergiu a memória sobre o convívio e as normas de punir, o conjunto de práticas culturais daquela escola. As memórias foram ordenadas para tentar entender a mais importante e mais duradoura instituição dedicada ao ensino agrícola em Sergipe. O trabalho é um estudo de História da Educação sob a perspectiva das contribuições de Norbert Elias para o debate a respeito do processo civilizador.

O ENSINO AGRÍCOLA EM SERGIPE

Buscando compreender o processo de organização das primeiras instituições escolares que se dedicaram ao ensino agrícola em Sergipe, este estudo analisa algumas dificuldades metodológicas encontradas durante o processo de realização de um estudo a respeito das práticas civilizatórias na trajetória histórica da Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão, desde a sua implantação, como Patronato São Maurício[1], em 1924. O trabalho foi delimitado temporalmente entre os anos de 1924 e 2004, por serem estes os anos que marcam o momento no qual se registra o início do efetivo funcionamento da primeira instituição estatal de ensino agrícola em Sergipe e a celebração dos oitenta anos de seu funcionamento ininterrupto. A pesquisa nasceu da necessidade de estudar a história do ensino agrícola, para entender o funcionamento das instituições escolares dessa natureza, que se disseminaram ao longo do século XX. Assim, buscou entender os procedimentos educacionais próprios a esse tipo de ensino, o que envolve categorias analíticas capazes de estabelecer distinções e menções a teorias. A modalidade de ensino aqui analisada diz respeito a instrução primária oferecida pelos patronatos agrícola a partir do início do século XX e, a partir da metade da mesma centúria, o ensino agrícola primário, ginasial e secundário, bem como o ensino técnico agrícola de segundo grau e de nível médio oferecido nos colégios agrícolas e nas escolas agrotécnicas. O ensino superior de agricultura, ou ensino agronômico, não é objeto desta análise, não obstante, eventualmente, aparecerem também referências a este grau de escolarização.
Os patronatos agrícolas podem ser analisados sob diferentes aspectos. O que se propõe aqui é o entendimento das diferentes propostas e das práticas escolares mais importantes que, ao longo de oitenta anos, marcaram a atuação da atual Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão. A participação de Sergipe no processo de organização de uma rede federal de escolas agrícolas é um tema que não recebeu a devida atenção da produção historiográfica. Mesmo tendo já funcionado durante todos esses anos ininterruptos, a Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão não tem sido objeto de estudos por parte dos pesquisadores que se dedicam a investigar a História da Educação. De um modo geral, são poucos os estudos de História da Educação no Brasil que se dedicam à investigação do ensino agrícola. Durante o último Congresso Brasileiro de História da Educação, de um total de 428 trabalhos aprovados pela Comissão Científica apenas três tinham como objeto o ensino agrícola[2].
Predominantemente os estudos sobre o ensino agrícola adotam duas vertentes explicativas: a primeira remete para a necessidade da formação de mão-de-obra dos trabalhadores rurais, em decorrência da abolição do trabalho escravo, enquanto a segunda aborda a questão da delinqüência infantil. “No âmbito jurídico o debate foi direcionado para as definições de menoridade e de aspectos que embasariam a aplicabilidade da legislação (menores abandonados, delinqüentes, etc.) e a incorporação ao mundo da produção, especialmente a fabril[3]”. A delinqüência estava associada ao problema da vadiagem, considerando vadios “aqueles que vivessem em casa dos pais ou tutor, mas que se mostrassem refratários a receber instrução ou entregar-se ao trabalho sério e útil, preferindo vagar pelas ruas e logradouros públicos. A vadiagem ou mendicidade, por sua vez, era categorizada em dois tipos: habitual e não-habitual”[4].
Ambas as abordagens oferecem importantes contribuições à pesquisa sobre o assunto. O entendimento normalmente aceito é o de que o ensino agrícola, ao se consolidar no Brasil através dos patronatos, apresentou dois modelos: “o escolar – voltado para o ensino profissional, educando para o trabalho agropecuário – e o correcional – regenerar por meio da vida no campo com a predominância da reclusão e da ênfase nos aspectos disciplinares”[5]. Todavia, é necessário alargar a perspectiva de interpretação da assistência à infância e adolescência pobres, buscando para ela uma maior fertilidade científica[6], tomando contribuições presentes em trabalhos que se dedicam a analisar temáticas como as dos negros, das mulheres, dos prisioneiros, da formação do campo científico e das práticas escolares no Brasil, de modo a oferecer maior clareza à constituição do conhecimento histórico quanto a esta questão. Contudo, o problema que requer maior atenção nesse debate diz respeito ao conjunto de representações sobre a história do Brasil, disseminado a partir do movimento republicano. Dentre as idéias difundidas está presente uma quase consensual certeza de que a política social brasileira é obra exclusiva do republicanismo, desfocando assim as discussões a respeito deste problema.
É evidente que o Estado republicano efetuou transformações no discurso a respeito do ensino agrícola, porém não se pode afirmar que tais preocupações e concepções eram novas na sociedade brasileira. As alterações no discurso acerca do ensino agrícola durante a Primeira República, além da busca de legitimação política do regime, são reveladoras do modo como as ciências agrárias, da mesma maneira que outros campos acadêmicos buscavam legitimar-se sob a condição de serem conhecimentos científicos suficientes para a solução dos problemas da atividade agropecuária.

O ENSINO AGRÍCOLA, A EUGENIA E A CRUZADA CIVILIZATÓRIA

O estudo acerca do ensino agrícola cria possibilidades de uma melhor compreensão sobre o vigoroso debate educacional que se instalou no Brasil durante a segunda metade do século XIX e persistiu, atravessando as primeiras décadas do século XX. Um debate que reunia juristas, políticos, médicos, clérigos, militares e professores, dentre outros. Todos eles buscando apoiar-se em preceitos cientificistas.


Tratava-se, antes de tudo, de uma verdadeira cruzada civilizatória a que se atiravam os eugenistas, estes arautos dos tempos modernos. Na sua missão, ocuparam todos os espaços possíveis: as academias médicas, as sociedades filantrópicas, as casas legislativas, as escolas, as delegacias de polícia, os tribunais de justiça, estabelecendo uma verdadeira rede de solidariedade entre discursos, instituições e personagens, entre estes o médico, o pedagogo, o jurista, os agentes do controle social repressivo, a dona de casa, o pai preocupado com o destino de sua prole[7].


Sob a inflexão eugenista, os projetos que debatiam o ensino agrícola buscaram sua inserção no âmbito do debate educacional, questão que, de resto, mobilizava amplos setores da vida social,

conquistava participantes e para a qual confluíam aspectos diversos, delineando um rol temático que integrava os investimentos das elites urbanas em luta pela hegemonia. Os patronatos agrícolas foram inseridos nesse debate ainda que numa posição subordinada: a educação dos pobres, daqueles que eram pegos nas ruas das cidades ou estavam inseridos em grupos familiares que fugiam do ideário da época. Educação menor, com outros fins que aqueles atribuídos às escolas, colégios e demais instituições educacionais[8].


Captar alguns problemas metodológicos para a compreensão das práticas civilizatórias dessa educação é propósito deste estudo. O caminho escolhido remete a pesquisa a olhar a escola por dentro, apanhar as suas práticas, priorizando esse enfoque sem, contudo, desprezar o âmbito das suas relações com a vida social do mundo exterior, uma vez que as instituições pedagógicas de cada sociedade correspondem a suas necessidades.
É necessário que os estudos sobre o ensino agrícola considerem a lei como categoria central e importante. Compreender a sua natureza é fundamental para entender as propostas, os modelos e a legislação do ensino agrícola no Brasil do século XIX; para analisar o processo de implantação das instituições de ensino agrícola no Brasil durante a primeira metade do século XX; para entender o caráter de reformatório que tiveram essas instituições e os padrões civilizatórios que estabeleceram. Porém, para operar com esta categoria de análise é necessário entender que em boa parte dos estudos sobre o ensino agrícola a lei “floresce na forma de um marxismo sofisticado, mas (em última instância) altamente esquemático, que, para nossa surpresa, parece brotar das pegadas daqueles que, entre nós, pertencem a uma tradição marxista mais antiga”[9]. Para os adeptos desta tradição, a lei é por definição uma parcela da “superestrutura” que se adapta às necessidades de uma infra-estrutura de forças produtivas e relações de produção. Em outras palavras, um instrumento dos grupos dominantes que define e viabiliza o domínio sobre a força de trabalho. O entendimento é o de que a lei determina o que é a propriedade e o que é o crime e ao assim fazê-lo estabelece as regras e sanções que confirmam e consolidam o poder do grupo dominante. Deste modo, o poder da lei é a legitimação do domínio de um grupo social. Por isto, os adeptos da teoria marxista não necessitam “ter nenhum interesse pela lei, a não ser como um fenômeno do poder e da hipocrisia da classe dominante; seu objetivo deveria ser o de simplesmente subvertê-la”[10].
Tomar a lei deste modo e utilizá-la como categoria de análise seria fazer tabula rasa do terreno da historiografia, tentando descobrir algo que pode ser conhecido sem nenhuma investigação. Daí a necessidade de abandonar alguns pressupostos correntemente aceitos. É necessário aceitar parte da crítica marxista. De fato há evidências que confirmam as funções da lei como mistificadora e expressão de um grupo social. Mas, é preciso considerar também a lei em termos de sua lógica, das suas regras e dos seus próprios procedimentos. A lei como lei, sem a qual não é possível conceber nenhuma sociedade complexa. A lei nunca foi uma necessidade dos dominantes para oprimir e muito menos os dominados tinham necessidade de legislação. A lei sempre foi um espaço de conflito e não de consenso. As relações entre os grupos são expressas, não de qualquer modo que se queira, mas através das formas da lei. E a lei, “como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação) tem suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento independentes”[11].
Os estudos sobre o ensino agrícola não podem estar subordinados a uma perspectiva teleológica. Para que a pesquisa histórica tenha significado é fundamental que o pesquisador renuncie àquilo que deseja, que acredita que deve ser ao investigar o que é e o que foi. Por isto, a observação de Edward Palmer Thompson deve ser sempre considerada:


Posso me equivocar em tudo isso. Dizem-me que, logo ali no horizonte, estão para surgir novas formas de poder operário, as quais, fundando-se em relações produtivas igualitárias, não precisarão de nenhuma restrição e poderão dispensar os impedimentos negativos do legalismo burguês. Um historiador não está qualificado para se pronunciar sobre tais projeções utópicas. Tudo o que sabe é que não pode trazer-lhes em apoio nenhuma prova histórica, qualquer que seja. Seu conselho poderia ser: observe esse novo poder por um ou dois séculos antes de render suas defesas[12].


Todavia, a análise não pode estar limitada aos horizontes da legislação, seja para negá-la ou para afirmar as suas conquistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo civilizador é considerado neste trabalho a partir da abordagem de Norbert Elias[13]. Ele acredita que o homem necessita aprender regras de etiqueta e conduta como requisitos da condição humana. E como o homem é socialmente civilizado, a civilização é o resultado de um processo ao qual as pessoas são submetidas. Elias ocupa-se da história a partir de agentes individuais que se apresentam combinados com outros em configurações específicas. Para tanto, é fértil o seu diálogo com Freud[14], uma vez que segundo este último, a inclusão do indivíduo num grupo vem acompanhada da apresentação de regras que devem ser seguidas. Buscando a felicidade, o homem procura escapar às imposições da civilização e eliminar essas regras que lhe causam sofrimento. Mas, a realização fora dos padrões de civilidade também não é possível. Então, é preciso adotar as normas, utilizando-as como mecanismo de proteção.
Os procedimentos adotados por este trabalho consideram que


conceitos como indivíduo e sociedade não dizem respeito a dois objetos que existiram separadamente, mas a aspectos diferentes, embora inseparáveis, dos mesmos seres humanos (...). Ambos se revestem do caráter de processos e não há a menor necessidade, na elaboração de teorias sobre seres humanos, de abstrair-se este processo-caráter. Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias (...) que tratem de seres humanos. (...) Pode-se dizer com absoluta certeza que a relação entre o que é denominado conceitualmente de indivíduo e de sociedade permanecerá incompreensível enquanto esses conceitos forem usados como se representassem dois corpos separados, e mesmo corpos habitualmente em repouso, que só entram em contato um com o outro depois, por assim dizer[15].


[1] O Patronato São Maurício sofreu sucessivas reformas, teve seus objetivos alterados, e atualmente funciona sob a denominação de Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão.
[2] Cf. NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. “A Pedagogia do castigo: as práticas escolares na escola agrícola Benjamin Constant”; SOARES, Ana Maria Dantas e OLIVEIRA, Lia Maria Teixeira de. “Ensino Técnico Agropecuário e formação de professores: novas perspectivas numa velha receita?”; e, RODRIGUES, Andréa Gabriel Francelino. “Escola Doméstica de Natal: signo de modernidade educacional da sociedade norte-rio grandense no século XX(1914-1945). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. 2002. Anais do II Congresso Brasileiro de História da Educação. 3 a 6 de novembro de 2002. História e memória da Educação Brasileira. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. CD Room.
[3] Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. 2003. Formar cidadãos úteis: os patronatos agrícolas e a infância pobre na Primeira República. Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco. p. 10.
[4] Cf. BRAGA, Ana Beatriz. 1993. A construção social da infância trabalhadora na Primeira República. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. p. 119.
[5] Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. Op. cit. p. 32-33.
[6] Este tipo de abordagem é adotado por autores como Milton Ramon Pires de Oliveira no seu estudo sobre os patronatos agrícolas da Primeira República. Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. Op. cit.
[7] Cf. MARQUES, Vera Regina Beltrão. 1994. A medicalização da raça. Médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas, Editora Unicamp. p. 15.
[8] Cf. OLIVEIRA, Milton Ramon Pires de. Op. cit. p. 58.
[9] Cf. THOMPSON, E. P. 1987. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro, Paz e Terra. p. 349.
[10] Idem. p. 350.
[11] Ibidem. p. 353.
[12] Idem, ibdem. p. 358.
[13] Cf. ELIAS. Norbert. 1994. O Processo Civilizador: uma História dos Costumes.v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
[14] Cf. FREUD, Sigmund. 1996. “O futuro de uma ilusão”. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago. p. 15-19.
[15] Cf. ELIAS, Norbert. 1991. O Processo Civilizador: uma História dos Costumes. v.1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 220-221.

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