domingo, 4 de outubro de 2009

AGRICULTURA OU PEDAGOGIA? AGRÔNOMOS E PEDAGOGOS NO COLÉGIO AGRÍCOLA BENJAMIN CONSTANT (1967-1979)

Desde a implantação das primeiras instituições destinadas ao ensino agrícola no Brasil, ainda no século XIX, este tipo de política foi sempre uma iniciativa das autoridades e profissionais do setor agrícola, recebendo pouca atenção das autoridades educacionais. No período republicano, a partir de 1918, foram implantados alguns patronatos agrícolas federais. Na década de 1920, havia uma consciência disseminada no país acerca da competência do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio para a gestão dos patronatos agrícolas. Assim, mesmo sendo uma instituição estadual, o Patronato Agrícola São Maurício, criado em Sergipe no mês de outubro de 1924, foi dirigido por um técnico indicado por aquele ministério.
Este trabalho se propõe examinar alguns conflitos que ocorreram em Sergipe, no Colégio Agrícola Benjamin Constant, nas décadas de 1960 e 1970, em função da transferência da política nacional destinada ao ensino agrícola do âmbito do Ministério da Agricultura para o Ministério da Educação. O estudo busca conhecer algumas práticas do ensino agrícola, reconhecendo o universo que se esconde por trás das portas de importantes instituições escolares, como são os colégios agrícolas. Para tanto, lançou mão de relatórios de dirigentes do Colégio Agrícola Benjamin Constant, leis, decretos, regulamentos, relatos de dirigentes da política agrícola, jornais e entrevistas.
O estudo considera a lei como elemento central e importante na análise. Para que a pesquisa histórica tenha significado é fundamental que o pesquisador renuncie àquilo que deseja, que acredita que deve ser, ao investigar o que é e o que foi. Todavia, a análise não pode estar limitada aos horizontes da legislação, seja para negá-la ou para afirmar as suas conquistas. É necessário verificar que a instituição escolar é hierarquizada e hierarquizadora dos saberes e do prestígio atribuído aos agentes que nela atuam e às pessoas que ela forma. Para discutir este problema a pesquisa dialoga com Pierre Bourdieu, apanhando deste autor um conjunto conceitual referente aos problemas próprios à constituição do campo profissional da Agronomia no Brasil. Este estudo não se debruça sobre o ensino superior de Agronomia. Entretanto, o ensino agrícola aqui analisado é também visto sob a ótica do processo de legitimação do exercício de profissões que incorporaram os saberes técnicos escolarizados ao seu conjunto de práticas. Observando os conceitos de representação e cultura usados por Roger Chartier (1990), a pesquisa procura identificar as transformações que as práticas do ensino agrícola ensejaram na formação dos profissionais dedicados à agricultura.
O texto é parte da pesquisa “Memórias do Aprendizado: oitenta anos de ensino agrícola (1924-2004)”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Sergipe – FAP SE.
A atual Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão é uma autarquia[i], vinculada à Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Ministério da Educação, localizada na região leste do Estado de Sergipe, situada no quilômetro 96 da BR 101, Povoado Quissamã, Município de São Cristóvão, distante do centro urbano da capital aproximadamente dezoito quilômetros. A Escola teve sua origem no Patronato São Maurício, que oferecia curso de aprendizes e artífices a crianças e adolescentes com problemas de ajustamento social e emocional. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 4.024/61) fez com que, em 1964, a instituição de ensino ganhasse a sua nona denominação: Colégio Agrícola Benjamin Constant. Atualmente a Escola Agrotécnica é o único estabelecimento escolar do Estado de Sergipe a oferecer cursos de nível médio para a formação de técnicos destinados ao setor primário da economia. A instituição adota, desde o ano de 1924, o regime de internato.


AGRÔNOMOS E PROFESSORES


Desde o princípio, o cargo de diretor da instituição era um posto de representatividade política bastante evidente, que conferia prestígio ao seu ocupante. Com a regulamentação do ensino agrícola no Brasil, em outubro de 1910, a legislação definiu que o “diretor dessas instituições deveria ser um engenheiro-agrônomo” (Rosa, 1980, p. 71). Era este o profissional que iria disputar o mercado de trabalho “e o campo intelectual/político com os demais profissionais até então autorizados a falar e intervir, dentre outras coisas sobre a agricultura” (Mendonça, 1992, p. 38). Com a federalização do Patronato, em 1934 e a sua transformação em Aprendizado, o poder dos agrônomos ficou mais visível.
A tendência de transferir o ensino agrícola do Ministério da Agricultura para o Ministério da Educação já estava presente na Lei Orgânica do Ensino Agrícola, de 1946. A distância entre o ensino agrícola e os demais tipos de ensino médio era uma questão em debate no país. Segundo aquela legislação, “o ensino agrícola ficava dependente do Ministério da Agricultura, embora mantivesse uma organização semelhante a dos demais tipos de ensino médio” (Rosa, 1980, p. 129). A Lei Orgânica do Ensino Agrícola, portanto, atendeu, de modo efetivo, a necessidades postas quanto a organização do campo da agricultura científica no Brasil. Os profissionais da área foram capazes de entender que as suas regras “penetram em todos os níveis da sociedade, efetuam definições verticais e horizontais dos direitos e status dos homens e contribuem para a auto-definição ou senso de identidade dos homens” (Thompson, 1987, p. 358). Nesse embate, a lei foi o instrumento definidor de uma disputa travada entre detentores de diferentes saberes na luta pelo controle de importantes espaços de poder e gerenciamento do aparelho de Estado.
Quando, em 1964, a denominação mudou para Colégio Agrícola Benjamin Constant o poder na Escola ainda era completamente exercido pelos engenheiros agrônomos e o delegado estadual do Ministério da Agricultura tinha uma influência significativa no processo político de escolha do diretor[ii]. O controle da rede federal de escolas ainda estava subordinado ao Ministério da Agricultura, que mantinha, com sede no Rio de Janeiro, a Superintendência do Ensino Agrícola e Veterinário – SEAV. A Delegacia do Ministério da Agricultura no Estado funcionava com um colegiado integrado pelo Delegado[iii], pelo diretor de defesa animal, pelo diretor de defesa vegetal e pelo diretor do Colégio Agrícola.
Com a transferência do ensino agrícola federal do Ministério da Agricultura para o Ministério da Educação[iv] os engenheiros agrônomos passariam a influenciar menos a instituição. Aqui, a lei foi um meio de regulação de um importante conflito profissional, delimitando os campos dos saberes agronômico e educacional. O Decreto nº. 60.731, de 19 de maio de 1967, promoveu a transferência da Superintendência do Ensino Agrícola e Veterinário para o Ministério da Educação e Cultura, atribuindo-lhe a denominação de Diretoria do Ensino Agrícola – DEA até 1970, quando foi criado o Departamento de Ensino Médio – DEM[v]. O Departamento gerenciou o ensino agrícola até o ano de 1973, quando então se implantou a Coordenação Nacional do Ensino Agrícola – COAGRI[vi].
A transferência do ensino agrícola para o Ministério da Educação gerou algumas polêmicas, mas há vozes de profissionais da Agronomia que participaram do processo e consideram que o MEC era um espaço mais adequado para a definição da política própria a esse tipo de ensino que o Ministério da Agricultura: “A Escola foi melhor [quando] subordinada ao MEC. Quando ela passou para o MEC ela melhorou. Foi devagarzinho, mas o MEC tinha melhores cabeças. O MEC era mais preparado para administrar a Escola que o Ministério da Agricultura. O pessoal do MEC tinha melhor formação” (Laonte Silva, 2003). Idêntica é a avaliação do veterinário e professor Matias Paulino da Silva: “quem faz educação é o Ministério da Educação. A atividade primordial do MEC é gerir o negócio da educação. O Ministério da Agricultura é mais o setor de produção, enfim da agricultura e pecuária. Depois tinha que ser o MEC. A evolução era pouca nas escolas” (Matias Silva, 2003).
Alguns professores concordam com esta interpretação, porém fazem uma ressalva: “Era necessário que a escola estivesse no Ministério da Educação, que é o lugar de educar. Mas, a finalidade dessa transferência não foi cumprida, porque o Ministério da Agricultura deixou de manter os investimentos e o custeio referentes a atividades agrícolas. O Ministério da Educação deveria assumir as responsabilidades financeiras pela formação geral, porém o Ministério da Agricultura deveria ser economicamente responsável pela parte da produção agrícola” (Santos, 2004).
Contudo, outros professores que também participaram do mesmo processo divergem deste ponto de vista: “Houve discussões acaloradas. Vieram algumas pessoas do Ministério da Educação aqui para dar cursos. Aquilo não era curso, aquilo era doutrinação” (Pereira, 2004). O entendimento dos que preferiam o Colégio Agrícola Benjamin Constant sob o controle do Ministério da Agricultura era o de que a filosofia dominante no Ministério da Educação comprometia a qualidade do ensino oferecido pela escola. Nesse conflito se revelam as posições em disputa e as divergências existentes entre a orientação pedagógica dos agrônomos e a proposta que o MEC procurava implementar.


[Vieram] duas mocinhas [técnicas do MEC]. [Uma delas] perguntou: “o que é Educação?” Depois que todo mundo verteu seus pontos de vista, aí [ela] disse: “Tá todo mundo errado. A educação é tudo isso e mais alguma coisa”. Quer dizer, foi uma lição formidável. Eram muito inteligentes, mas por debaixo disso existia um veneno, eu considero um veneno. Elas vieram para aqui, com o objetivo de modificar qualitativamente o ensino. E eu disse na época: mas isso não é crime professora, nós estamos indo à frente. Elas não souberam me dizer quais as razões que elas estavam pedindo para você ensinar menos. O professor Tenisson [Aragão] se levantou inflamado: “Não há Ministério aqui que me faça... que me obrigue dar menos do que eu dou, eu vou dar... vou dizer um negócio a vocês eu vou dar mais”. O professor Giovane levantou muito mansamente e disse: “as funções algébricas, matemáticas, o meu conteúdo, é o conteúdo que a gente aprendia no ginásio antigo. Quer dizer se vocês querem minimizar isso...” (Pereira, 2004).


Este era, de um modo geral o ponto de vista de engenheiros agrônomos e médicos veterinários. Segundo o professor Emanoel Franco, a área à qual a instituição se destina é agrícola. Na sua opinião, a área educacional não seria capaz de gerenciar um colégio agrícola. O debate, na verdade, revela uma posição extremamente preconceituosa de alguns profissionais que atuavam no Colégio quanto à necessidade de incorporar padrões pedagógicos ao seu trabalho, o que não fora visto como necessidade profissional docente enquanto a instituição esteve subordinada ao controle do Ministério da Agricultura. O professor Cândido Augusto Sampaio Pereira, expressa esse entendimento, ao comentar o que é Pedagogia:


a parte pedagógica começa a descobrir, (...) tenta descobrir chifre em cabeça de eqüino. (...) Maria foi para o mato e pegou a lenha. Esse tema vai ser inovado da seguinte forma: uma jovem chamada Maria saiu da cidade e foi para as campinas para pegar gravetos. Encontrou um toco e trouxe para queimar. Bom! São coisas assim fantasiosas... Eu lembro, por exemplo, do Compêndio que eu comprei, Eficiência e Eficácia. Parece que é de Tubino. Um trabalho dele que varou o Brasil inteiro (...) Eu li umas duas vezes. O que é que esse rapaz quer falar? Depois eu descobri (...) que eficiência é uma coisa e eficácia é outra. Mas é uma coisa tão boba, tão insignificante, tão irrelevante, que melhor seria que você não escrevesse, Eficiência e Eficácia (Pereira, 2004).


Os professores que fazem a defesa do ensino agrícola sob controle do Ministério da Educação, e não do Ministério da Agricultura, algumas vezes exageram as suas críticas quanto a esta última instituição além de defenderam com ardor a necessidade do refinamento das práticas pedagógicas no ensino agrícola.


As escolas agrotécnicas têm que estar no MEC porque elas têm de ser escolas técnicas e não agrícolas. Elas precisam oferecer ensino básico, ensino médio e ensino superior, a depender da condição de formação dos seus professores. A Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão poderá ser amanhã um novo Centro Federal de Formação Tecnológica do Estado de Sergipe (Bomfim, 2003).


As próprias relações entre os campos agrícola e educacional estão limitadas por essa legislação, que define os seus termos e determina as condições sob as quais a escola deve formar o profissional do setor agrícola. Subordinada ao Ministério da Educação, a Escola viveu um processo que acirrou e promoveu profundas alterações no processo de disputa de poder acadêmico entre as chamadas áreas técnica e acadêmica. Para a professora Cláudia Maria Lima Dantas, o pessoal da área técnica reclama “porque eles se sentiam os donos do ensino agrícola” (Dantas, 2004).



[i] Como autarquia a Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão goza de autonomia “administrativa, financeira, patrimonial, didática e disciplinar, compatíveis com a sua personalidade jurídica”. Cf. Decreto nº 2.548, de 15 de abril de 1993 (Regimento Interno das Escolas Agrotécnicas Federais).
[ii] Segundo entrevista de Laonte Gama da Silva, quando da sua escolha para o cargo de diretor da Escola Agrícola Benjamin Constant, ele foi convidado pelo delegado do Ministério da Agricultura em Sergipe, Aloísio Leite. “Eu recebi um telefonema para comparecer [à Delegacia do Ministério da Agricultura]. Quando cheguei lá achei o ambiente muito solene. Aloísio [Leite] me chamou e disse: ‘Sente aqui junto de mim’. Aí comunicou o que os colegas todos já estavam sabendo. Eu havia sido escolhido para dirigir o Colégio. Sem me consultarem. Me emocionei, lógico. Não imaginava isso, essa nomeação”.
[iii] Naquele período o orçamento dos gastos federais com as atividades agrícolas em Sergipe era controlado pelo Delegado do Ministério.
[iv] Essa transferência ocorreu no ano de 1967. Todo o pessoal do ensino agrícola foi, então, também transferido do quadro do Ministério da Agricultura para o quadro de pessoal do Ministério da Educação.
[v] O DEM incorporou as Diretorias do Ensino Agrícola, Industrial, Comercial e Secundário.
[vi] Em 1975 a denominação foi mudada para Coordenação Nacional do Ensino Agropecuário, porém foi mantida a mesma sigla: COAGRI.

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