quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A HISTORIOGRAFIA E A POLÍTICA EDUCACIONAL DA DITADURA MILITAR IV

OUTRAS LEITURAS POSSÍVEIS


A memória, como é sabido, revela, mas também silencia. “Não raro, é arbitrária, oculta evidências relevantes, e se compraz em alterar e modificar acontecimentos e fatos cruciais. Acuada, dissimula, manhosa, ou engana, traiçoeira” (REIS, 2004, 29). Os rumos que disciplinas como a Educação Física tomaram sob os governos militares podem receber interpretações distintas daquelas consagradas pela tradição de uma certa historiografia educacional brasileira. Autores como Marcos Taborda têm demonstrado que não apenas cumprindo a função de meio de controle do estudante é possível interpretar o ensino de Educação Física no período.


Essa historiografia, emergente nos anos 80 do séc. XX e fortemente influenciada no plano político pelos ventos do retorno à democracia, e pela influência das teorias crítico-reprodutivistas – de corte marxista ou não – no plano acadêmico, pouco avançou no sentido de perceber as reais motivações dos agentes escolares na adoção de um modelo de aula baseado no esporte – as chamadas progressões pedagógicas (OLIVEIRA, 2004).


Autores como Luiz Antônio Cunha e Moacir de Góes produziram interpretações sobre tal disciplina que parecem um pouco exageradas, afirmando que “a idéia força da ênfase na educação física era a seguinte: o estudante, cansado e enquadrado nas regras de um esporte, não teria disposição para entrar na política” (CUNHA e GÓES, 1985, 80). Taborda aponta que interpretações como esta são baseadas em esquemas que denomina de generalizantes e abstracionistas, uma vez que a consciência dos professores e estudantes seria absolutamente "ingênua" ou estaria "reificada".
É possível partir dos estudos de campos como o da história das disciplinas escolares e entender a ação de professores e alunos, verificando-se que o currículo é um campo de conflito, de disputas, compreendendo como naquele momento estudantes e docentes estavam pautados, internacionalmente, por um período de desenvolvimento, sem precedentes, das práticas esportivas em todo o planeta, que colocavam o esporte como fenômeno de massa valorizado sob a condição de espetáculo.
As décadas de 1960 e 1970 foram férteis em iniciativas importantes e políticas inovadoras como os colégios de aplicação, a implantação nacional de uma rede pública de escolas de primeiro e segundo graus, ampliando de uma maneira até então desconhecida as oportunidades de acesso à escolarização para os grupos mais pobres da população brasileira.
No que diz respeito a legislação do ensino que vigorava antes do golpe, autores importantes como Dermeval Saviani revelam que


o governo militar não considerou necessário modificá-la totalmente mediante a aprovação de uma nova lei de diretrizes e bases da educação nacional. Isso porque, dado que o golpe visava garantir a continuidade da ordem sócio-econômica que havia sido considerada ameaçada no quadro político presidido por João Goulart, as diretrizes gerais da educação, em vigor, não precisavam ser alteradas (SAVIANI, 2004).


Esta realidade impõe o afastamento de um certo tipo de maniqueísmo que estabelece terem alguns agido corretamente e outros de modo inadequado, dividindo o debate educacional numa peleja entre críticos e alienados. A política educacional, da mesma maneira que a prática dos professores e estudantes, foi ambígua. Aquela foi a realidade objetiva e não a dos nossos julgamentos de valor.
A lei 5.692/71 manteve vigentes os dispositivos aprovados pela lei 4.024/61, durante o regime democrático, quanto aos fins da educação, o direito à educação, a liberdade do ensino, a administração do ensino e os sistemas de ensino, sem que fossem, portanto, alteradas as diretrizes da educação nacional. Em outras palavras, a reforma educacional efetivada pela nova legislação aprovada pelos governos ditatoriais respondia também a demandas populares e a pressões do movimento social e dos grupos de elite, manifestadas ao longo de toda a primeira metade da década de 1960, como a extensão da obrigatoriedade do ensino básico para oito anos; o fim dos exames de admissão ao ginásio, mecanismo que impedia a continuidade dos estudos de alunos mais pobres; a equiparação de todos os cursos de nível médio, de modo a extinguir a segregação de alguns cursos técnicos que, mesmo depois da vigência da lei 4.024/61, ainda tinham dificultado o acesso de seus concludentes ao ensino superior; e, a expansão da oferta do ensino público de primeiro e segundo graus.
A reforma do ensino de primeiro grau fez com que houvesse um aumento visível dos investimentos do setor público na expansão da rede de instituições escolares destinadas a oferta dos antigos ensinos primário e ginasial, reunidos, após a reforma, nas oito séries do ensino de primeiro grau.
Quando são tomados os números referentes à matrícula do ensino de primeiro grau no período da ditadura militar, também é possível fazer algumas verificações pouco usuais.


No último ano em que o Brasil viveu sob o regime militar, a oferta de vagas no ensino de primeiro grau havia crescido 245,81 por cento.
Com a lei 5.692/71, também foi possível mudar muito o panorama da oferta de vagas no ensino de segundo grau.




Em vinte anos, a oferta de oportunidades no ensino de segundo grau experimentou um crescimento da ordem de 670,57 por cento.
A reforma do ensino superior, efetivada através da lei 5.540/68, foi resultante de pressões populares exercidas por estudantes e professores e também por grupos ligados ao regime golpista. Alunos e docentes pugnavam pela autonomia universitária, indissociabilidade entre ensino e pesquisa e abolição da cátedra. A reforma possibilitou a expansão da instituição universitária pública no Brasil e facilitou o processo de abertura de instituições privadas de ensino superior. Atendendo a pressões dos grupos de elite que apoiaram o golpe e tomando por base padrões internacionais, foram instituídos o sistema de crédito, a matrícula por disciplina, os cursos semestrais, os cursos de curta duração e a organização fundacional.




Durante os vinte anos de ditadura militar no Brasil, a matrícula no ensino superior de graduação cresceu 1.332,85 por cento. Esse crescimento contou com uma significativa participação do ensino privado que, em 1964 detinha o controle de 40,35 por cento do total das matrículas e no último ano da ditadura oferecia 59,92 das matrículas existentes. Todavia, o crescimento de vagas nas instituições públicas também foi da maior importância. Em 1964, existiam nas instituições públicas de ensino superior 59,65 por cento do total de matrículas. Em 1984, as vagas nas instituições públicas eram 40,18 por cento das matrículas. A oferta de vagas no setor público cresceu 895,56 por cento, enquanto essa ampliação nas instituições de ensino privado foi de 1.979 por cento. De todo modo, essa oferta contou com a participação do setor público através de programas de bolsas de estudo e de outros financiamentos, como o Programa de Crédito Educativo, possibilitando a presença de muitos trabalhadores e seus filhos como alunos das instituições de ensino superior. Outra característica dessa expansão do ensino superior privado foi a significativa oferta de cursos de graduação noturnos.
Para Dermeval Saviani,


um legado importante que nos foi deixado por esse período se refere à institucionalização e implantação dos Programas de Pós-Graduação, a partir do Parecer nº. 77, aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 1969. Embora implantada segundo o espírito do projeto militar do “Brasil Grande” e da modernização integradora do país ao capitalismo de mercado associado-dependente, a pós-graduação se constituiu num espaço privilegiado para o incremento da produção científica e, no caso da educação, também para o desenvolvimento de uma tendência crítica que, embora não predominante, gerou estudos consistentes sobre cuja base foi possível formular a crítica e a denúncia sistemática da pedagogia dominante, alimentando um movimento de contra-ideologia (SAVIANI, 204).




Durante os vinte anos do regime militar a matrícula nessa modalidade de ensino cresceu 1.597,66 por cento. Os investimentos da ditadura militar na pós-graduação correram paralelamente ao que se investia em ciência e tecnologia. E neste particular, é muito importante a observação de Ana Maria Fernandes:


O ano de 1964 é tomado como um ponto crucial na análise porque, se o regime militar, como conseqüência de sua própria natureza, coagiu a comunidade científica, também apoiou financeiramente a ciência e a tecnologia como nunca antes no Brasil. Esse apoio financeiro pode-se explicar pelas políticas do regime autoritário brasileiro que se baseavam no planejamento, nos tecnocratas e numa economia fortemente estatizada. Tal como foi usualmente caracterizado, o Estado militar brasileiro baseava-se numa aliança entre a burguesia nacional e internacional, os militares como grupo dirigente, e os tecnocratas (FERNANDES, 1990: 20).


Os dados estatísticos aqui apresentados ganham maior relevo quando se considera que durante os vinte anos estudados, o crescimento da população brasileira foi de 56,80 por cento.

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