quarta-feira, 11 de agosto de 2010

SOBRE A HISTÓRIA DA QUÍMICA EM SERGIPE - III

É necessário verificar que a instituição escolar e os institutos de pesquisa são hierarquizados e hierarquizadores dos saberes e do prestígio atribuído aos agentes que neles atuam e às pessoas que eles formam. Para discutir este problema sob a perspectiva da pesquisa e do ensino de Química é possível dialogar com Pierre Bourdieu, apanhando deste autor um conjunto conceitual referente aos problemas próprios à constituição do campo profissional dos químicos no Brasil. O ensino de Química deve também ser visto sob a ótica do processo de legitimação do exercício de profissões que incorporaram os saberes técnicos escolarizados ao seu conjunto de práticas. O estudo das escolas e das instituições de pesquisa deve, portanto, observar que elas tornam-se “um designativo das formas de capital simbólico que definem as diversas posições de certos grupos ou agentes num dado debate intelectual” , estabelecendo o lugar de cada uma das escolas e dos institutos de pesquisa no campo intelectual.
Ao operar com a noção de habitus como sistema de disposições socialmente construídas a partir da escola e dos padrões científicos estabelecidos, Pierre Bourdieu descortina o princípio gerador e unificador de esquemas de pensamento e das práticas próprias a um determinado grupo de indivíduos escolarizados . Assim, as escolas e as instituições de pesquisa são agências formadoras de habitus que incorporaram padrões culturais em circulação no Brasil, nos Estados Unidos da América e em alguns países europeus.
A rede de escolas e de instituições de pesquisa aprofundou o conhecimento científico a respeito dos saberes com os quais operavam à medida que os químicos se empenhavam para constituir um discurso que, exacerbando o caráter científico e autônomo de sua atividade, lhes garantisse reconhecimento social e legitimidade intelectual . Na condição de escolas e institutos de tecnologia e de pesquisa científica essas instituições terminaram por oferecer aos próprios químicos as condições que o projeto de cientifização da sua atividade requeria. O estudo da história da pesquisa e do ensino de Química possibilita perceber um dos modos usado pelos profissionais com formação superior para a gestão científica do seu campo.
A memória específica sobre a formação de profissionais da Química em Sergipe apresenta duas características explicativas: a primeira remete para a representação construída pela geração de 1948, que se apresenta como fundadora do campo e, em certa medida, secundariza as contribuições da geração de 1923, posto que o foco dos holofotes tende a deixar na penumbra o grupo que se dedicou a este mister no período entre guerras. Além disso, a memória da geração de 1948 tende a assumir a identidade de ter sido o primeiro grupo de pesquisadores no campo a realizar estudos sistemáticos associados ao processo de formação, produzindo para o grupo antecedente a representação de excelentes estudiosos, que infelizmente não teria desfrutado da possibilidade de formar profissionais (o que é verdadeiro apenas em parte) e por isto teria trabalhado com pesquisas pontuais destinadas a resolução de problemas tecnológicos imediatos ligados ao processo de produção (o que é improcedente); a segunda característica dessa memória remete a organização de um conjunto de instituições científicas destinadas à pesquisa Química em Sergipe, na década de 1920, a uma suposta premência da expansão capitalista no Estado.
A legitimação da primeira tendência pode ser observada em trabalhos memorialísticos como o do professor José Pedro de Andrade Castor, que afirma a identidade da geração de 1948 como a dos criadores de “uma elite de profissionais competentes, capaz de promover e estimular o desenvolvimento cultural e industrial do Estado e, conseqüentemente do país” . Elite na qual esses mesmos memorialistas se inserem, apresentando-se então como membros da geração de fundadores, ou, na pior das hipóteses, por ela formados. Já a afirmação da segunda tendência pode ser obtida em estudos que analisam a implantação do ensino superior em Sergipe, interpretando tal processo “como conseqüência do desenvolvimento econômico” .
Ambas as abordagens oferecem importantes contribuições à pesquisa sobre o assunto. O entendimento deste memorialismo é o de que o ensino de Química ao se consolidar no Brasil apresentou dois modelos: o escolar – voltado para o ensino profissional, educando para a formação de profissionais em nível superior – e o de aplicação - através de Institutos de pesquisa aplicada e útil para o emprego agrícola e industrial imediato. Todavia, é necessário alargar a perspectiva de interpretação do desenvolvimento da Química entre nós, buscando para ela uma maior fertilidade científica, tomando contribuições presentes em trabalhos que se dedicam a analisar temáticas como a da formação do campo científico e das práticas escolares e científicas no Brasil, de modo a oferecer maior clareza à constituição do conhecimento histórico quanto a esta questão. Para isto, é necessário ter clareza de que não foi apenas o ensino que ofereceu este tipo de contribuição na história do Brasil. Tal contribuição passa a ser predominante a partir da metade do século XX. Contudo, o campo da pesquisa química, no Brasil e também em Sergipe, vinha se constituindo desde o século XIX, em muitos casos à revelia de instituições de ensino.
As alterações no discurso acerca do ensino e da pesquisa Química durante a primeira metade do século XX, além da busca de legitimação política dos profissionais, são reveladoras do modo como a ciência e o campo acadêmico buscavam legitimar-se sob a condição de serem suficientes para a solução dos problemas brasileiros.
As abordagens a respeito do ensino e da pesquisa Química sempre estão presentes nos estudos que discutem as condições sociais do processo produtivo brasileiro no campo e na cidade. Contudo, para compreender a formação e legitimação de atividades como a Química durante a primeira metade do século XX é necessário olhar não apenas para o ensino superior, mas também buscar o processo de organização de uma rede de instituições de pesquisa.
O Instituto de Química Industrial de Sergipe, atualmente Instituto de Tecnologia e Pesquisas de Sergipe, foi a primeira instituição a se dedicar a este campo de ensino e pesquisa no Estado. Fundado em 1923 , pelo presidente Maurício Graccho Cardoso, logo após a criação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em São Paulo, e do Instituto Nacional de Tecnologia – INT, no Rio de Janeiro, o Instituto de Química industrial buscava contribuir para com o aperfeiçoamento da indústria do açúcar – principal fonte da riqueza em Sergipe nas primeiras décadas do século XX. A crença era de que o aumento da produção estava diretamente relacionado ao conhecimento da composição do solo, à melhoria do cultivo da planta e ao controle químico da produção em laboratório. O Instituto de Química Industrial oferecia um curso de três anos de nível superior destinado a preparação de técnicos para a indústria açucareira, a exploração do sal, a preparação do couro e o aproveitamento das plantas oleaginosas.

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