quinta-feira, 14 de abril de 2011

A CIDADE NO ARQUIVO: O ACERVO DO PODER JUDICIÁRIO COMO FONTE PARA OS ESTUDOS DA HISTÓRIA DE ARACAJU - III

O viajante mostrou as distorções sociais presentes no processo de urbanização da nova capital e revelou toda a carga de preconceitos próprios da sua época, ao descrever a periferia da cidade: “Permitiram a gente das classes baixas, fixadas aos poucos em Aracaju, construírem habitações ao seu modo e conforme os modelos que já tinham, sob os altos coqueiros. Vê-se assim, por trás e junto à parte bonita da cidade de Aracaju, uma horrível aglomeração de casas cinzentas, de barro, com telhados de palha de coqueiro, ranchos primitivos, como se justifica no sertão, mas que não deviam nunca ser permitidos numa nova capital provincial recém-fundada” (AVÉ-ALLEMANT, 1961).
Apesar das suas restrições ao padrão de moradia, Avé-Allemant se encantou com a beleza dos moradores, que considerou belas figuras de homens e mulheres: “O Sr. Urpia chamou a minha atenção para uma bela figura de rapariga tapuia, muito conhecida pela sua beleza. De pé na porta da sua cabana, penteava os cabelos; na atitude dum verdadeiro modelo de Ticiano, as espáduas roliças cobertas por uma nívea camisa” (AVÉ-ALLEMANT, 1961). Revelou que a nova cidade era uma espécie de central de empregos da administração pública dada a ausência de qualquer outra atividade produtiva em Aracaju. Para, finalmente, reclamar da completa ausência de vida cultural: “Não vi sinal de concertos, dum teatro, cassino etc. O povo reunia-se em pequenos grupos diante da casa do Presidente, quando tocava a pequena banda de música do batalhão lá aquartelado” (AVÉ-ALLEMANT, 1961).
De tudo isso é feita a cidade. Das relações entre as pessoas, das medidas dos seus espaços, das relações entre as pessoas e esses espaços. Das relações entre as pessoas, os espaços e os acontecimentos do passado e do presente. “A cidade se embebe dessa onda que reflui das recordações e se dilata” (CALVINO, 1990: 14).
Os que pensam Aracaju necessitam conhece-la. Traçar o seu perfil é fundamental para planejá-la, orientar o seu crescimento, buscar fazer com que o aparelho de Estado intervenha no sentido de aperfeiçoar a qualidade de vida daqueles que têm em Aracaju o espaço no qual se realizam como pessoas, exercem a cidadania e buscam faze-lo cada vez de um modo mais adequado. Porém, o seu conhecimento não pode ser homogêneo, porque homogênea não é a vida nos seus espaços. Os seus sujeitos históricos vivem tantas diferenciações quantas são as suas identidades. São comuns os estranhamentos como são recorrentes os encontros. A expansão territorial é desigual, da mesma maneira que as construções são variadas desde os primórdios da vida da cidade. Os bairros são aglomerados que marcam bem essas diferenças. Os novos bairros de vida burguesa têm padrões de moradia com maior refinamento, uma maior quantidade de equipamentos urbanos à disposição dos seus moradores, ruas arborizadas, com boa iluminação, as hostilidades da natureza sob controle e postas à disposição do bem estar dos cidadãos, para o deleite geral. Tudo se contrapondo aos bairros de determinadas áreas que crescem sem o prévio ordenamento urbano, nos quais a pressão popular demanda por serviços básicos como saneamento, regularização de ruas, energia elétrica, transporte coletivo.
Os registros de crescimento da cidade, a instalação de espaços de lazer como cafés, confeitarias, bares, fazem sempre referências às áreas centrais ou aos bairros privilegiados, espaços de moradia da elite. Nos bairros populares, quando muito, indústrias que, sob o pretexto de estarem criando novos empregos, muitas vezes degradam as condições de vida e destroem o meio ambiente. Adquirir a condição de metrópole implica em impor um pesado ônus aos habitantes dos bairros mais pobres da cidade. Daí resultar inadequado buscar conhecê-la de modo homogêneo. A metrópole está já muito distante do pequeno burgo fundado por Inácio Barbosa em 1855, com sua incessante luta contra as intempéries naturais. Todavia, as diferenciações persistem. Variam valores e costumes, a formação cultural. O quotidiano ambiental do cidadão comum é diverso, como os processos de formação da identidade cultural em cada área da cidade também se distinguem. São distintos a memória, os hábitos, a interação com o espaço geográfico. São diferentes os caminhos que levam ao passado de Aracaju, mas em todos eles a alteridade das pessoas sofre uma forte influência da cidade no seu processo de construção, a partir dos diferentes modos de enfrentamento dos desafios na luta pela vida. A história de vida das pessoas está entrelaçada à história do espaço que elas ocupam na cidade. Entrelaçamento que diferencia um grupo de pessoas que tem seu cotidiano no bairro 18 do Forte, de um outro grupo do Siqueira Campos, São Conrado, Santa Maria (Terra Dura), Industrial, Cirurgia, Ponto Novo, Coroa do Meio ou Atalaia. As recordações dão conta da existência de duas cidades: a dos ricos e a dos pobres. A destes últimos, em tudo distinta da outra. Da paisagem ambiental à humana, dos utensílios domésticos aos costumes e aos ritos de passagem próprios da vida de homens e mulheres.
Afinal, todo o processo de luta pela ocupação do espaço urbano, além de guerra social, é também um processo de conflito com a natureza. Processo no qual o imaginário das pessoas atribui uma valoração negativa àquelas áreas que não foram ainda transformadas, domadas pela urbanização, valorando-se positivamente as áreas transformadas pela habilidade humana. Espaço no qual o homem implanta a sua casa, onde se sente seguro. O homem da cidade segue tentando dar uma aparência pasteurizada ao processo de conflitos próprios da luta pela ocupação do solo urbano, pelo seu ordenamento racional, pela busca da civilidade, das boas maneiras, do conforto e da sofisticação. Sofisticação que se contrasta com subprodutos desse processo civilizador, como a poluição, a super população. Problemas que o homem busca compensar embelezando praças, projetando as novas intervenções e vivendo as indesejadas contradições que fazem crescer a pobreza ao mesmo tempo em que se acentua a acumulação da riqueza; o mesmo processo que permite ao homem desfrutar os prazeres do anonimato, pagando o preço da solidão e desfazendo-se da solidariedade supostamente presente nas pequenas comunidades. Desfazimento imposto pelo espírito de concorrência que domina os grandes aglomerados humanos. Representações que precisam ser superadas para que se incorpore o entendimento real da cidade de Aracaju, do seu processo de desenvolvimento urbano e das regularidades próprias às condições de vida dos seus habitantes.
A necessidade de explicar as distintas mentalidades que orientaram e as que orientam o processo de desenvolvimento urbano em Aracaju, as utensilagens presentes na visão de mundo dos seus agentes, as suas diferenciações, estão presentes no ponto de partida desta iniciativa. É fundamental produzir explicações, traduzi-las racionalmente para desvendar os mistérios próprios ao monstro urbano. Existem já muitas avaliações produzidas por filósofos, engenheiros, médicos sanitaristas, historiadores, sociólogos, urbanistas e operadores do direito, preocupados todos com a vida urbana. O material existente na cidade para que ela seja compreendida é múltiplo e vário. Tanto o saber acadêmico quanto aquele produzido pelos governantes podem dar importantes contribuições, ao lado de estudos descomprometidos com os rigores de ambas as produções, como os presentes nos processos judiciais, e os trabalhos produzidos sob a ótica de interesses dos empreendimentos privados, podem dar contribuições fundamentais. As formas de representação da cidade devem ser buscadas nas propostas de políticas urbanas de intervenção, nas análises acadêmicas, nos projetos empresariais, na memória dos viajantes, no discurso obtido a partir do imaginário popular, nos autos existentes no Arquivo Judiciário. Todos dão excelentes elementos à produção de um suporte teórico que oriente a construção do conhecimento sobre a cidade, que é propósito desta iniciativa. Todos são saberes que se constituíram, produziram imagens, formaram representações e conceitos. Eles nos ajudam a compreender a vida nos seus distintos recortes. A história de Aracaju pode representar muito.

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