sábado, 9 de abril de 2011

A EDUCAÇÃO DOS SALESIANOS E OS DEVERES PARA COM DEUS

Manuais como o Compêndio de Civilidade dos Salesianos buscavam formar no Brasil, durante a década de 20 do século passado, o chamado homem civilizado, que contribuísse para a construção da sociedade civilizada. O entendimento era o de que o homem civilizado deveria ser preparado para compreender uma grande variedade de fatos, de natureza tecnológica, das maneiras de comportamento, dos conhecimentos científicos, das idéias religiosas e dos costumes. A vida civilizada estabelecia tipos específicos de habitações adequadas à moradia, a maneira como os homens e mulheres deveriam viver juntos, o modo de preparar e consumir os alimentos. Em outras palavras, a auto-imagem de uma sociedade que estabeleceu padrões políticos, econômicos, religiosos, técnicos, morais e sociais que deveriam ser incorporados e seguidos por todos.
Dos cinco primeiros capítulos do Compêndio, que tratam dos Deveres, a opção feita aqui foi a de analisar apenas dois deles: os capítulos I e II, que discutem, respectivamente, os Deveres para com Deus e os Deveres para com os pais. Os primeiros deveres apresentados pelo Compêndio de Civilidade são para com Deus. São seis prescrições que, de um modo geral, buscam sintetizar parte do conteúdo dos Dez Mandamentos contidos nas Tábuas da Lei de Moisés.


1. Deus, que é o Criador e Soberano Senhor de tudo quanto existe, merece todo o nosso respeito e toda a veneração. Consagra-lhe, pois, os melhores afetos de teu coração e tributa-lhe todos os dias a homenagem da oração, temendo sumamente ofende-lo.
2. Recorda-te que o temor de Deus é o princípio da sabedoria e a base da santidade; d’Ele emana todo o bem. Segue o conselho do bom Tobias a seu filho: “Pensa no Senhor todos os dias e guarda-te de pecar contra Ele e de transgredir os seus mandamentos”.
3. Ao respeito e amor devidos a Deus, acrescenta o amor e o respeito para com a sua religião e os seus ministros. Dos ministros de Deus ou fala bem ou então cala-te, como fazes com as pessoas que te são caras.
4. Evita discussões sobre religião. Tomar parte em tais questões, sem haver feito sérios estudos religiosos, pode prejudicar as boas causas e ofender a Deus e as coisas santas (p. 7).
5. Tolera as crenças religiosas dos outros, mas confessa sincera e francamente a tua Fé. Todos, mesmo os ímpios, admiram o homem de caráter, que não tem receio em mostrar-se francamente cristão.
6. Guarda-te de imprecar, ou mesmo de usar em vão o nome de Deus, da SS. Virgem, dos Santos, embora por gracejo ou por desabafo de ira, como nesciamente fazem alguns (p. 8).


Esse conjunto de prescrições assume claramente o caráter dos conteúdos existentes nos manuais catequéticos católicos. Dissemina valores e padrões instituídos pela Igreja Católica, a serem assumidos por aqueles que pretendem ser considerados pessoas de bem. Tem o mesmo caráter de civilidade existente no Decálogo, na condição de um conjunto de regras destinadas a guiar o povo de Deus. Aí estão contidas as bases de uma idéia muito cara aos educadores católicos: o que eles consideram a educação integral da pessoa. Essas regras, portanto, atenderiam a necessidade de formar o homem civilizado sem perder a perspectiva da missão evangelizadora. Elas tornam possível o crescimento espiritual e intelectual do homem.
O conjunto de Deveres para com Deus apresentado no Compêndio de Civilidade aqui analisado é revelador da presença da Igreja Católica na vida social. Os mesmos ensinamentos aparecem nas aulas de religião, o que transforma o livro de boas maneiras dos padres salesianos em uma importante ferramenta didática, mesmo porque o catolicismo sempre fez uso de dispositivos como livros, revistas e impressos escolares em geral, para disseminar seus dogmas e preceitos. Contudo, observar tais regras apenas do ponto de vista teológico pouco acrescenta para o entendimento do processo civilizatório ao qual o homem está submetido.
O ensinamento dos Deveres para com Deus ultrapassa as meras regras de civilidade. Fica bem claro na primeira norma a importância de obedecer ao Criador para que se tenha uma vida digna e reta diante de Deus e dos homens. As duas primeiras regras são, ademais, compatíveis com o primeiro mandamento do Decálogo: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. A pretensão é de acentuar o amor de Deus pelo seu povo e a dívida de gratidão que este deve ter para com Ele. O princípio de reconhecimento para com a maior das hierarquias, a divina, também está aí presente, mesmo porque a hierarquização fundamenta não apenas a vida religiosa, mas também a vida dos grupos sociais historicamente conhecidos. O Dever de número dois evidencia tarefas necessárias à validação do amor que o povo deve nutrir pelo seu Criador. Tudo articulado com o princípio da obediência.
O terceiro e o quarto Deveres para com Deus elencados pelos padres salesianos são correspondentes ao segundo mandamento mosaico: “Não falar seu santo nome em vão”. Aqui, a prescrição está colocada no âmbito da virtude e da fé religiosa. Pretende-se regular particularmente o respeito pelas coisas santas através do uso que se faz das palavras. A Igreja e os Estados sempre instituíram um padrão de fala como modelo civilizado. A importância de se regular o uso da fala consiste em assegurar os diferentes níveis de estratificação social, as formas corretas de falar e a legitimação dos saberes.
Articulados com o terceiro mandamento da lei de Deus (“Guardar domingos e festas”), os Deveres de números cinco e seis presentes no Compêndio de Civilidade, estão em consonância com a prescrição moral de prestar a Deus um culto exterior visível, público e regular. Como elemento cultural, esta moralidade é socialmente aprendida e está sujeita a diferentes etapas do processo civilizatório. Os padrões de moralidade e de religiosidade sofrem variações de acordo com as diferentes culturas. Toda religião possui padrões morais determinantes da sua constituição, evitando oscilações e aberturas interpretativas quanto aos seus ensinamentos.
Um ex-aluno do Colégio Salesiano Nossa Senhora Auxiliadora, em Aracaju, Laonte Gama da Silva, que freqüentou a escola na década de 40 do século XX e conheceu o Compêndio de Civilidade, afirma que “no colégio interno, o regime era muito rígido. O aluno era obrigado a rezar e ir à missa todos os dias. Aqueles que não cumpriam as obrigações religiosas eram mal avaliados em comportamento. E quem não tinha nota boa em comportamento, mesmo nos dias de sábado e domingo, recebia punições disciplinares” (SILVA, Laonte Gama da. Entrevista concedida ao autor no dia 24 de setembro de 2003). Das segundas-feiras aos sábados, a missa começava pontualmente às seis horas. No domingo, os alunos assistiam duas missas: a primeira começava às sete horas e terminava às sete horas e quarenta minutos. A segunda começava às oito horas e terminava às nove horas. Era a primeira atividade do dia. Às doze horas e quinze minutos, quando todos estavam no refeitório sentados para o almoço, um padre tocava uma campainha e antes de começar a comer, todos de pé, rezavam uma Ave Maria. Por quinze minutos os estudantes ficavam em silêncio e, em seguida, a um novo toque de campainha, todos diziam em coro: “Damos graças a Deus”. Às vinte horas, todos os alunos estavam prontos para dormir. Reunidos em um dos salões do internato, todos ficavam de pé e rezavam durante vinte minutos. Logo após, o padre diretor ou um outro designado por ele fazia uma prédica aos alunos acerca dos valores cristãos, exaltando a importância daquele dia no calendário da Igreja Católica. Por fim, desejava boa noite e os estudantes voltavam para os seus dormitórios.

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