sábado, 26 de março de 2011

VISÕES DA MODERNIDADE: O ESPELHO EUROPEU E AS PROPOSTAS PARA O ENSINO AGRÍCOLA NO BRASIL DO SÉCULO XIX

Predominantemente os estudos sobre o ensino agrícola adotam duas vertentes explicativas: a primeira remete para a necessidade da formação de mão-de-obra dos trabalhadores rurais, enquanto a segunda aborda a questão da delinqüência infantil.


No âmbito jurídico o debate foi direcionado para as definições de menoridade e de aspectos que embasariam a aplicabilidade da legislação (menores abandonados, delinqüentes, etc.) e a incorporação ao mundo da produção, especialmente a fabril (OLIVEIRA, 2003. p. 10).


A delinqüência estava associada ao problema da vadiagem, considerando vadios


aqueles que vivessem em casa dos pais ou tutor, mas que se mostrassem refratários a receber instrução ou entregar-se ao trabalho sério e útil, preferindo vagar pelas ruas e logradouros públicos. A vadiagem ou mendicidade, por sua vez, era categorizada em dois tipos: habitual e não-habitual (BRAGA, 1993. p. 119).


Os registros acerca das origens do ensino agrícola no Brasil revelam propostas que buscaram implantar o modelo de educação para meninos que vinha contribuindo para o desenvolvimento da agricultura em países como a Alemanha e a Suíça, ao lado de estabelecimentos de ensino para mulheres que cumprissem idênticos objetivos (SERGIPE, 1836). As propostas afirmavam que seria este um bom caminho para ajudar as mulheres pobres, uma vez que estas aprenderiam a “coser, lavar, engomar, fazer flores, cuidar de hortas e da educação dos animais domésticos”. A educação dos meninos deveria priorizar os ensinamentos “práticos de lavrar a terra, de plantá-la e dispô-la para produzir diversas colheitas; de preparar os seus frutos, de cuidar do gado e animais domésticos e de construção rural”.
Assim, a discussão sobre o ensino agrícola se difundiu com a característica de ser esta uma modalidade destinada a homens e mulheres livres e pobres, sem outra perspectiva de sustento. Todos que se envolviam na discussão afirmavam que o modelo que lhes inspirava era germano-suiço. Isto põe em questão algumas certezas a respeito desse tipo de atendimento. O entusiasmo pelas reformas republicanas ainda dominante na historiografia educacional brasileira leva alguns autores à afirmação de que


durante a Primeira República, o debate sobre a situação da infância e da adolescência pobres incorporou questões diversas e participantes diferenciados; era conformado pelo contexto de redefinições historicamente demandadas que acompanhavam as modificações em curso desde o final da monarquia (OLIVEIRA, 2003. p. 10).


As discussões acerca da assistência à infância no Brasil ainda são, portanto, em certa medida, cheias de interpretações carregadas de preconceitos próprios da historiografia dos primeiros anos da República que se estabeleceu em 1889. O discurso a respeito da assistência à infância durante a Primeira República, na verdade, estava marcado pela necessidade de resolução de problemas postos por fatos que ocorreram no final do governo monárquico, a exemplo da libertação dos escravos que, em todo o país, levou ao crescimento da composição demográfica das cidades, ao tempo em que “a oferta de empregos e as condições de vida urbana não respondiam a esse incremento e deterioravam-se” (OLIVEIRA, 2003. p. 15).
É verdade que o Estado Republicano se constituiu trazendo consigo a expectativa do novo. Mas, também é verdadeiro que levou a que se produzissem deformações nas representações históricas do regime que o antecedeu. Sob a perspectiva da historiografia republicana, o atendimento à infância no Brasil do século XIX não teria sido contemplado pelas ações governamentais. Mas, há outras evidências que desautorizam a interpretação segundo a qual durante o período a política de atenção ao menor registrava apenas “a permanência das instituições herdadas do período colonial” (OLIVEIRA, 2003. p. 12).
Há uma crença generalizada nos estudos a respeito do assunto, dando conta de que, ao longo dos anos oitocentos, persistira apenas “o modelo institucional de atendimento à pobreza que foi transplantado para as colônias e portos de Portugal (na América, África e Ásia)” (OLIVEIRA, 2003. p. 11). Desde o século XIX, num processo que se estendeu ao longo do período republicano e do século XX, disciplinar e controlar foram metas da elite dirigente. “O projeto de repressão à ociosidade, de 1888” (OLIVEIRA, 2003. p. 15), era importante expressão de um debate acerca do que fazer com mão-de-obra anteriormente cativa e então já trabalhador livre. Havia necessidade de reprimi-los e obrigá-los ao trabalho, “superar seus vícios, civilizá-los” (OLIVEIRA, 2003. p. 15).
O estudo a respeito do ensino agrícola cria, portanto, possibilidades de uma melhor compreensão a respeito do vigoroso debate educacional que se instalou no Brasil durante a segunda metade do século XIX e persistiu, atravessando as primeiras décadas do século XX. Um debate que reunia juristas, políticos, médicos, clérigos, militares e professores, dentre outros. Todos eles buscando apoiar-se em preceitos cientificistas.


Tratava-se, antes de tudo, de uma verdadeira cruzada civilizatória a que se atiravam os eugenistas, estes arautos dos tempos modernos. Na sua missão, ocuparam todos os espaços possíveis: as academias médicas, as sociedades filantrópicas, as casas legislativas, as escolas, as delegacias de polícia, os tribunais de justiça, estabelecendo uma verdadeira rede de solidariedade entre discursos, instituições e personagens, entre estes o médico, o pedagogo, o jurista, os agentes do controle social repressivo, a dona de casa, o pai preocupado com o destino de sua prole (MARQUES, 1994. p. 15).


O processo civilizador é considerado neste trabalho a partir da abordagem de Norbert Elias (ELIAS, 1991). Ele acredita que o homem necessita aprender regras de etiqueta e conduta como requisitos da condição humana. E como o homem é socialmente civilizado, a civilização é o resultado de um processo ao qual as pessoas são submetidas. Elias ocupa-se da história a partir de agentes individuais que se apresentam combinados com outros em configurações específicas. Para tanto, é fértil o seu diálogo com Freud (FREUD, 1996. p. 15-19), uma vez que segundo este último, a inclusão do indivíduo num grupo vem acompanhada da apresentação de regras que devem ser seguidas. Buscando a felicidade, o homem procura escapar às imposições da civilização e eliminar essas regras que lhe causam sofrimento. Mas, a realização fora dos padrões de civilidade também não é possível. Então, é preciso adotar as normas, utilizando-as como mecanismo de proteção. Dito de outra maneira, o processo civilizador é o mesmo que aponta para a obediência e o trabalho.

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