quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

ALEMANHA, FRANÇA, ESTADOS UNIDOS. A PEDAGOGIA DE SÍLVIO ROMERO DIANTE DO ESPELHO - III

O tema da liberdade de ensino tem em Sílvio Romero uma dimensão fundamental para explicitar a sua visão pedagógica. Trata-se da questão da qualidade do ensino ministrado aos brasileiros. Ele qualifica a escola brasileira como sendo uma instituição pedante e palavrosa que forma ignorantes pomposos e fúteis. Tal escola estaria formando uma nação de pigmeus intelectuais que sabem frases e fórmulas, mas não sabem pensar. Uma geração portadora de um palavreado desprovido de idéias, depositária de uma espécie de ensino a retalho, ministrado através de caderninhos prontos, dosadores de ignorância que teria contaminado as gerações de brasileiros que viveram no século XIX. Ao identificar o problema, Romero atribui aos norte-americanos a responsabilidade por ele: “Cabeças superficiais, desorientadas pelo espetáculo vistoso do industrialismo hodierno, entenderam de tal ser, em definitivo, o espírito dos modernos tempos e sonharam introduzir esse materialismo, essa americanisação, até na esfera do ensino” .
Seguindo esse raciocínio, fez a defesa da cultura humanista, afirmando que o caminho para o avanço da ciência da sociedade industrial passa por uma sólida formação geral. Entende que toda a ciência do século XIX é parte de um processo histórico que tem suas raízes na antiguidade clássica.
A visão que Sílvio Romero tinha das necessidades sociais postas para o seu tempo permitiu que ele afirmasse haver necessidade de indústrias e compreender que tal necessidade não dispensa o papel social que cumprem os literatos, A sociedade precisa de quem saiba montar máquinas, mas igualmente não prescinde dos que sabem grego e latim; há necessidade de homens que dominem as propriedades do ácido fluorídrico e do manganês, mas também quem interprete as correntes do pensamento contemporâneo e suas origens greco-romanas. Na sua perspectiva o ensino não poderia ser o mero reflexo de coisas práticas, de objetos industriais e nada mais. Seria inconcebível se o ensino primário se preocupasse apenas com a transmissão de rudimentos dos ofícios mais comuns, desde a agricultura até a ferramentaria, passando por coisas como serralheria e alfaiataria. Seria inconcebível a renúncia à leitura de lendas, contos, criações estéticas, substituindo-as apenas por receitas práticas, pequenos pedaços de física e química, fórmulas de sais, de tintas, de aplicações industriais, madeiras, metais, tudo exclusivamente prático. Seria inaceitável, no ensino secundário que se renunciasse ao grego, ao latim, a literatura, a gramática, a história e se substituísse tudo isso somente por matemática, física, química, história natural, apenas visando o fim de algum ofício, indústria ou emprego. Esse processo de americanização futilizava o papel da história, filologia, arqueologia, estética, filosofia e tudo o mais que não abrisse as portas a uma carreira, a um meio de vida.
A liberdade de ensino pregada por Sílvio Romero não era a dos que defendiam a proposta de americanização, mas também não era a dos que defendiam um humanismo clássico e desinteressado, sem qualquer compromisso com aquilo que o seu evolucionismo entendia ser a modernidade. As bases para tanto Romero buscou no fisiologista e reitor da Universidade de Berlim Du Bois-Reymond, e no francês Alf Fouillé. O francês, como Sílvio entusiasta do germanismo, fora buscar em uma palestra que Du Bois-Reymond fizera em 1867 as bases para o seu livro L’ensigment au point de vie national. O brasileiro trabalhou com os dois textos e entendeu que “tanto a conferência de Du Bois-Reymond como o livro de Fouillé, deveriam constituir o programa de quem no Brasil se quisesse ocupar com a instrução popular” . Culturalista, Sílvio Romero se assume como adversário do que ele mesmo chamava de americanização. Condenava o que dizia ser uma instrução terra-a-terra, que não servia para elevar o espírito e não possuía ideal. Não aceitava que o ensino fosse meramente industrialístico e visasse apenas o ganha-pão imediato, fosse reduzido a uma aptidão mecânica que apenas buscava um ofício, preparado em doses como se faz com uma receita de bolos ou com uma lista de compras. A instrução, tal como ele a desejava, teria que abrir os horizontes da cultura, tocar a alma, falar ao coração, desanuviar o espírito, aperfeiçoar a índole humana. Responsabilizava o espírito humano de rotina pelo quadro que a americanização industrial do ensino apresentava. Via na França as bases desse espírito de rotina que influenciara os norte-americanos. Mas, via também na França a possibilidade de escapar ao espírito de rotina. E acreditava ser a Alemanha a nação que reunia as melhores condições para que se pudesse dar um salto de qualidade. Para ele, o industrialismo norte-americano fora uma tentativa de fugir ao espírito de rotina que exagerara na dose.
Essa reação ao espírito de rotina se dera por uma outra razão que Sílvio Romero também abominava. O apego a tradição e a velhos hábitos que faziam perdurar um falso humanismo, palavroso e fútil, circunscrito ao que ironicamente ele chamava de “gramatiquices sovadas” e “ratorismos mofentos”, base que gerara toda essa reação industrialista do ensino. Daí se começou a confundir ciência com ofício. Nas suas palavras: “espírito científico com espírito de ganância”, educação com receituários para a memória. O classicismo inútil e envelhecido fora trocado por uma americanização estreitadora do horizonte cultural. Romero reclamava contra ambas as posições e invocava sempre, para dar força aos seus argumentos, a autoridade pedagógica e científica de Du Bois-Reymond, ex-reitor da Universidade de Berlim, àquela ocasião uma instituição científica já bem reconhecida internacionalmente e, coincidentemente, o modelo no qual se espelhavam algumas universidades americanas.
Sílvio Romero faz a defesa daquilo que a pedagogia do século XX chamaria de escola unitária, capaz de formar o homem em todos os sentidos. O pensador Du Bois-Reymond inspira Sílvio Romero nas afirmações de que uma mesma e única escola deve ser capaz de formar o homem em todos os sentidos. O pensador alemão tem, no seu tempo, a clareza de afirmar que uma mesma e única escola deve ser capaz de preparar os que vão entrar na universidade, no exército, nas academias industriais ou nas academias de arquitetura. Para Romero o professor berlinense tocava fundo na ferida, quando diagnosticava que a “mania industrial trouxe a moléstia da especialização à outrance, e os grandes horizontes da especulação generalizada apertaram-se e com eles se encrustaram também os altos vôos das pesquisas desinteressadas”. Esse seria o principal problema a fazer com que houvesse em países como o Brasil um clima de guerra às profissões diplomadas, uma equiparação do ensino à indústria e ao comércio e uma exacerbação do liberalismo que Romero condenava.
Uma liberdade de ensino como entendida por Sílvio Romero teria que receber o acompanhamento permanente do Estado. Mais de 50 anos depois, Anísio Teixeira se bateu em defesa do que chamava de “exame de Estado”. O tema dos exames de Estado aparece em Sílvio Romero sob o rótulo de “exame integral”, ao qual todos deveriam estar obrigados. Nenhuma reforma séria da educação brasileira poderia ser feita – dizia Romero – sem que se adotasse o exame integral. A implantação desses exames requereria uma outra atitude que o nosso autor também defendia: o abandono dos pomposos e intermináveis programas que, segundo ele, não saíam do papel e só serviam para iludir os incautos.

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